P R O J E T O   E D I T O R I A L   B A N D A   L U S Ó F O N A

 

 

J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

BANDA LUSÓFONA | BRASIL

Ivan Junqueira | (1934)

A poesia de Ivan Junqueira

Floriano Martins

Indagado pela jornalista Denira Rozário sobre o estopim da poesia, responde Ivan Junqueira que “a origem de um poema está sempre vinculada, de alguma maneira, a uma matéria da memória”. Em função disto recordo uma observação de Milan Kundera em torno do equívoco que é buscar atitude - qualquer que seja sua ordem - em uma obra de criação, quando ali se deve procurar justamente o envolvimento com uma aprendizagem, com um sentido primeiro da compreensão, do mergulho no universo do desconhecido, única viagem que nos faculta o conhecimento da beleza. O conhecimento evocado pela poesia é exatamente o da matéria espiritual. Neste sentido irmanam-se poesia e filosofia: a riqueza da chama que ilumina e desvela os meandros de uma geometria do espírito, de um lado; as escavações no horizonte do imponderável, de outro. Uma mesma raiz definida pelo fogo ostensivo da beleza, mescla de visão e recolhimento, de expansão e esvaziamento. Compreende a poesia a irredutibilidade nas relações entre beleza e vazio. E o compreende justamente por buscar o centro, o magma de toda grandeza e vulnerabilidade da experiência humana. Melhor: por existir justamente a partir dessa busca. Digo existir e não realizar-se, uma vez que, definindo-se como linguagem, só pode realizar-se a partir de sua compreensão como tal, ou seja, a partir de sua definição como objeto, construção, matéria. Aí reside, em grande parte, a confusão reinante no universo de entendimento da ação do poeta, que tanto nos aclara Kundera em diversas ocasiões de seu Os testamentos traídos. Age portanto a linguagem e não a intenção do poeta, sua atitude.

Uma paginada geral em qualquer seleta de poesia brasileira contemporânea nos leva a situações que se movem de maneiras as mais desconexas dentro do que acima mencionamos. Estivéssemos fazendo um balanço dos anos 60 identificaríamos com mais brevidade o raio de ação das correntes envolvidas: de um lado a supremacia do poder estabelecido pelo Concretismo, segundo expedientes programáticos corriqueiros; de outro o recolhimento em si de uma resistência surrealista que não ousou o suficiente, sequer no plano de uma denúncia mais austera, para desbancar as articulações do trio Noigandres. Logo em seguida identificamos com muita facilidade a demência underground da chamada geração mimeógrafo. Nenhuma herança literária - exceto parcialmente pela poesia de Ana Cristina César -, por mais que tenham empunhado suas penas favoravelmente a alguns nomes desta geração críticos como Heloísa Buarque de Hollanda, Carlos Alberto Messeder Pereira e José Guilherme Merquior.

Desde então vivemos uma época obcecada pela produção do genuíno em escala vertiginosa, a palavra convertida em slogan sensacionalista. Ascende a mediocridade, em tal circunstância, à categoria de “esplendor artificial”, como bem o definiu George Steiner. Há evidências indiscutíveis de um severo e sigiloso programa de silenciamento da expressão criativa do artista em nosso tempo. Trata-se de uma visão acentuadamente centralizadora, coercitiva, de usufruto do poder a partir do cerceamento da ação do outro. Trata-se, claro está, de uma recusa violenta - por mais que a disfarcem os meios de comunicação, principais beneficiários de tal situação - da diferença entre os homens, da raiz de nossa própria existência no mundo. Bem sabemos que a aparente multiplicidade de escolhas que nos colocam as sociedades contemporâneas - sobretudo em países como o nosso - articula-se em uma teia estratégica de evasivas, ardil calculado que engendra um esvaziamento da escolha individual. Não há poesia determinada por esse ou aquele parâmetro exterior a seu próprio magma incandescente. Através da criação o homem determina sua própria existência, ao definir a extraterritorialidade de uma aventura que, embora tenha raízes essencialmente pessoais, inscreve-se na necessidade vital de ser compartilhada por todos.

Disse acima não haver herança deixada pela denominada geração mimeógrafo. Claro está que me refiro àqueles poetas que assumiram, de uma ou de outra maneira, o compromisso estético - se assim podemos falar - que caracterizou tal geração. Aqui me valho de uma lúcida avaliação de Sérgio Campos, ao situar que, “nestes tempos de subcultura, os apóstolos dos chamados novos tempos têm primado por dar ao poema a maior sujidade, relaxamento formal e desmazelo de escrita possível”, concluindo que “pretendem com isso decretar a morte histórica (ou estética) da poesia em sua acepção clássica, a começar pela agressão à palavra, levada ao paroxismo”. De uma maneira geral, como já afirmei em várias ocasiões, a grande contribuição da poesia brasileira vem exatamente daqueles poetas que não atrelaram seu nome a nenhuma circunstância de turno. Entre eles, destaca-se uma das vozes mais autênticas de nossa poesia, o carioca Ivan Junqueira (1934).

Toda grande poesia traz implícita uma irredutível defesa da memória e seus atributos, razão que tem levado alguns poetas a afirmarem a primazia absoluta do caráter autobiográfico da poesia. A este respeito, disse o poeta argentino Enrique Molina que “a biografia do poeta está em seus textos”. Na verdade a palavra poética orienta-se basicamente a partir dos espaços preenchidos pela memória. Define-se como que à espreita da revelação desses espaços, contribuindo fundamentalmente para a iluminação de suas vastidões obscuras. Neste percurso não há verdade inviolável, e nele o que descobre o poeta é exatamente a vulnerabilidade de toda presença, vulnerabilidade física de tudo quanto se mostra escondido em si mesmo, no aguardo de firmar sua verdade interior. Cabe ao poeta então descobrir a “respiração vital” (María Zambrano) de todos os ímpetos de sua memória, de maneira a fundir palavra e existência, ser e vida. Tudo isto que afirmo nos parece uma grande lição adquirida da leitura da poesia de Ivan Junqueira. Muito além de seu “obstinado rigor vocabular” (Per Johns) ou de seu domínio “magnificente da arte de fazer poemas” (Moacyr Félix), fascina o leitor uma outra virtude deste imenso poeta: a severa relação que mantém com sua memória, escutando-lhe sem a ela ceder, ambicionando seus vestígios mais secretos ao mesmo tempo em que cuidando para que a mesma não se torne exuberante em seus excessos. Diálogo primordial portanto em momento algum dissipado pelo devaneio ou por algum acesso de conspurcação retórica.

Ao prologar o mais recente livro de Ivan Junqueira, A sagração dos ossos (1994), acerta Antônio Carlos Secchin ao iniciar afirmando que o mesmo se ocupa do universo das “perdas e dissipações”, alertando ainda que este livro “representa a culminância de temas e formas obsessivamente trabalhados ao longo de mais de trinta anos de exercício criador”. Esta ambientação parece ser o centro da poética de Ivan Junqueira, inalienável medula, ao preservar em si uma serenidade perfeita. Há uma infinidade de tratamento a ser dada a esse recurso - o da poesia como um inventário das perdas -, marcada pelo ritmo interior de cada diálogo com o vazio e suas possibilidades de existência. Diz bem o poeta, embora transpondo tal imagem como característica de um grifo, que o que lhe inebria é “sua vertigem de estar só consigo, / sua aposta no absurdo e no infinito, / seu dom de amor, sua esperança mítica / de regressar um dia ao paraíso”. Portanto, seu relicário de perdas o conduz tão-somente a uma obsessão pessoal: regressar a um estado de ânimo suspenso, território em que não pode agir o terror supremo da perda. O grande desafio da poesia de Ivan Junqueira não radica exatamente no exorcismo da cadeia de efeitos provocados pelas perdas, e sim no combate direto com as forças que tornam o homem póstumo de si mesmo. Toda a sua poesia repete, não como flâmula proverbial mas antes como verdade substancial, o verso final deste seu A sagração dos ossos: “a vida é maior que a morte”.

Naturalmente minha observação acima não põe em discussão a avaliação que faz da poesia de Ivan Junqueira o crítico Antônio Carlos Secchin, bem ao contrário, busca fortalecê-la ainda mais, sendo bastante atentarmos para o que este tão bem define, ao argumentar a favor da total inexistência de hermetismo no poeta: “há, isto sim, uma densidade especulativa refratária a reduções maniqueístas, na trilha de uma ‘lírica do pensamento’ de escasso cultivo entre nós”. O olhar do poeta sinaliza a existência da vida, ao mesmo tempo que desperta toda consciência adormecida. Compreende a multiplicidade que encarnam a verdade e a beleza, a configuração de sua representação no mundo, o sentido último de entrega a que está predestinado. Em síntese, a poesia é uma grande taça da dor, que é também o esplendor do coração. Ambientação filosófica, e não somente o território evasivo de um rigor formal, não há sortilégio ou fundamento fenomenológico que garanta sua existência alheia à concreção do diálogo entre o homem e sua sombra, entre ser e vida, entre o presente e a vertigem irredutível de sua memória.

Poucos poetas no Brasil encarnam com tamanha veemência poética o que Antônio Carlos Secchin situa como uma “lírica do pensamento”. Lugar onde a linguagem fica em suspenso, detida em sábio aguardo da manifestação da memória. Ali a poesia age em prol de seu sentido primordial de religare, território onde todas as perdas convertem-se em ganhos, onde a palavra corresponde à verdade do ser. Não importa tratemos de Alfonso El Sábio, William Blake ou Ivan Junqueira. Não há retórica que invada o sentido de re-imersão permanente da poesia em seu ciclo infinito de formação. Através da memória não busca a poesia senão sua experiência extrema, recordando com Sérgio Campos que “a palavra é o ser da poesia” - não uma experiência formal, mas sim da forma, a maneira da plenitude agir sobre o informe. Essência do ser, essência da poesia. Neste sentido, nenhum outro poeta no Brasil foi tão longe quanto Ivan Junqueira.

 

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
JORNAL DE POESIA ACERVO GERAL BANDA LUSÓFONA EDIÇÕES CURURU

 

Jornal de Poesia (Brasil)

 

La Otra (México)

 

Matérika (Costa Rica)

 

Blanco Móvil (México)

 

Edições Nephelibata

 

Agulha - Revista de Cultura (Brasil)

 

 
Ficha Técnica

Projeto Editorial Banda Lusófona
Janeiro de 2010 | Fortaleza, Ceará - Brasil
Coordenação geral & concepção gráfica: Floriano Martins.
Direção geral do Jornal de Poesia: Soares Feitosa.
Projetos associados: Revista La Otra (México) | Ediciones Andrómeda (Costa Rica) | Revista Blanco Móvil (México) | Edições Nephelibata (Brasil).
Cumplicidade expressa: Alfonso Peña, Camilo Prado, Eduardo Mosches, Gladys Mendía, José Ángel Leyva, Soares Feitosa e Socorro Nunes.
Contatos:
Floriano Martins bandahispanica@gmail.com | floriano.agulha@gmail.com.
Soares Feitosa: soaresfeitosa@secrel.com.br | soaresfeitosa@uol.com.br.
Agradecemos a todos pela presença diversa e ampla difusão.