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				Isabel 
				Meyrelles: Obrigado 
				por vossa atenção 
				
				  
				
				
				Floriano Martins 
				
				  
				
				Desde 
				o princípio, a poesia de Isabel Meyrelles (Matosinhos, 1929) 
				sugere – independentemente de seu vínculo direto ou indireto com 
				o Surrealismo – dois caminhos: uma muito peculiar trilha 
				elegíaca e um namoro discreto com ludismo e imaginário popular, 
				aqueles jogos sutis e tão fascinantes que despertam a leitura de 
				poemas de Jacques Prévert, por exemplo. Em seu livro dedicado ao 
				Surrealismo, Maria de Fátima Marinho anota que não se verifica 
				nesta poesia, em suas primeiras produções, “uma influência 
				surrealista muito nítida”, em seguida realçando: “curiosamente, 
				é num livro muito mais recente, de 1976, que Isabel Meyrelles 
				apresenta mais elementos surrealistas”. [1] A ensaísta refere-se 
				a 
				Le livre 
				du tigre, 
				o quarto livro da poeta que antes já havia publicado 
				Emvoz 
				baixa 
				(1951),
				
				Palavras nocturnas 
				(1954), e
				
				O rosto deserto 
				(1966). As 
				metáforas transfiguradas vão surgindo aos poucos em sua poesia, 
				é verdade, porém já as encontramos desde o primeiro livro, e a 
				seu lado também se vão configurando e adensando outras 
				características do surrealismo: o humor e a exaltação lírica. 
				
				Em um 
				livro como 
				O rosto 
				deserto, 
				existem inúmeros laços com o Surrealismo, em que o acento lírico 
				fia uma colcha fulgurante de imagens sutis e refinadas. O mundo 
				fabuloso de Isabel Meyrelles está mais afeito às adivinhações 
				populares, cantigas provençais, contos de marinheiros, e a todo 
				este universo recolhido dava-lhe matizes que se aproximavam 
				daquele “entendimento com o inesperado” que evocava René Char. 
				Não se trata aqui, de todo, apenas de mistério, mas antes de um 
				jogo entre o misterioso e o ilusório, entre o vivido e o 
				imaginado. Uma ligação que Isabel faz muito bem amparada pelo 
				fulgor lírico pela presença de um humor requintado. Tudo isto 
				lhe garante a afinidade com o Surrealismo, mas, sobretudo, 
				define uma poética bastante própria e jamais submissa aos 
				reclames ortodoxos de parte alguma, oriundos das matrizes 
				surrealistas francesas ou de seu cataclismo português, sem se 
				perder no jogo suicida de quantos exijam, de tais ligações, que 
				engendrem um personagem mais real que toda a realeza 
				surrealista. Seu fluir poético, portanto, é naturalmente 
				surrealista, desde sua primeira imagem. 
				
				Isabel 
				Meyrelles muda-se para Paris em 1950, aos 21 anos de idade, onde 
				reside até hoje. O francês é uma língua íntima e essencial para 
				ela, que se tornaria tradutora de autores portugueses e 
				brasileiros. Traduz obras de Herberto Sales, Jorge Amado, José 
				Régio e Mário Cesariny de Vasconcelos. Sua paixão intensa pela 
				ficção científica e pelo fantástico a leva a especializar-se no 
				assunto e, em 1976, publica, em Lisboa, uma antologia intitulada
				
				O sexo na moderna ficção científica. 
				No ano seguinte, organiza duas exposições em Portugal, dedicadas 
				ao tema da criação artística na ficção científica. Dentre todos 
				os surrealistas portugueses, sua identificação maior foi com 
				Cruzeiro Seixas, com quem realizou exposições (1984 e 1996), 
				tendo sido responsável pela compilação da obra poética deste 
				imenso artista. [2] Da intensa afinidade com Cruzeiro Seixas 
				resulta uma séria de esculturas de Isabel, criadas a partir dos 
				desenhos de seu amigo. 
				
				Ao 
				escrever sobre as esculturas de Isabel Meyrelles, disse 
				Françoise Py que, apesar de seus motivos oníricos, elas resultam 
				em objetos que são configurados por um rigor clássico. [3] Mas 
				não deve mesmo haver contradição entre tais elementos. Idéias 
				audaciosas ou discrepantes podem se perder, aso não encontrem um 
				corpo com violência formal idêntica à de sua gema sonhada. É 
				possível até mesmo falar em um rigor automático ou em um rigor 
				onírico. O que há de mais autêntico nessa escultora-poeta, que 
				não teme o confronto com essas contradições, é a maneira como 
				recorta as diversas texturas do mundo à sua volta e lhes dá uma 
				deslumbrante conotação fabular. Não é que tudo ali seja fábula, 
				mas antes, que o fabuloso está presente em todos os momentos 
				evocados por sua obra, poesia e escultura. Em todo momento nos 
				lembra: o imaginário é parte de nossa vida. Vem daí, decerto, 
				que se valha, na poesia, da cumplicidade com tigres e espelhos, 
				sobretudo em 
				O livro do 
				tigre 
				e 
				O 
				mensageiro dos sonhos. 
				Apóia-se no bestiário fantástico que já desenvolve plenamente em 
				suas esculturas e no desdobramento de imagens, no jogo lúdico 
				que os espelhos permitem. Por ali passam Blake, Borges, Carroll, 
				mas também as canções de amigo, o livro da criação, as 
				declinações desconcertantes da memória… Nenhum labirinto é digno 
				de seu nome, se não traz em suas entranhas um minotauro. 
				
				E não se 
				pense que é possível adentrar este mundo prodigioso de Isabel 
				Meyrelles sem a cumplicidade do humor, em seu caso um humor 
				engenhoso, finíssimo, com imagens que evocam “uma máscara que 
				tem um ar tão verdadeiro / que toda a gente se engana” ou 
				“prisioneiros de uma gaiola aberta”. Humor que se alimenta de 
				uma mesma fonte de paradoxos, porém sem se resumir a simples 
				pilhéria ou tirada jocosa. Um humor que não se limita a arruinar 
				um plantel de conveniências sociais, mas sim que se mostra como 
				um abismo ante os dilemas da resignação. É um ousado ponto de 
				partida, quase de todo impalpável, que nos põe em contato com o 
				que há de mais verdadeiro em nós e que, por abandono de nossa 
				força de vontade, tornamos impossível. Há aqui aquele 
				entendimento do riso, que defendia Georges Bataille, o que me 
				lembra uma passagem de 
				Le 
				coupable 
				[4]  que 
				bem poderíamos encontrar em um poema de Isabel: “o homem é 
				sempre uma danaide esgotada”.  
				
				É 
				naturalmente aquele mesmo sentido de humor que levou Mário 
				Cesariny a perceber “uma revolução que a revolução não quer”. 
				Referia-se então ao amor (“o prazer da descoberta, o sentido de 
				uma vida exaltada e exaltante”), [5] porém o motivo pode passar 
				de um ponto a outro, ser deslocado ou aventurar-se em outros 
				abismos. Em qualquer caso se sabe que ao fechar as cortinas 
				saímos da sala com as mãos vazias. Este é o grande espetáculo da 
				existência. A poesia de Isabel Meyrelles o traz constantemente à 
				memória. 
				
				Referi-me 
				inicialmente a Prévert pela proximidade entre ambos no que diz 
				respeito a pequenas tiradas de humor atento ao imaginário 
				popular. Não há em sua poesia a dessacralização enfática do 
				real, que encontramos em Hans Arp, por exemplo. Há, sim, uma 
				desconfiança criadora que, em todo momento, manifesta sua crença 
				em um mundo possível. A mesma sintonia que encontramos em 
				Cruzeiro Seixas. [6] Na escultura, verifica-se o mesmo sentido 
				de humor. Uma dessacralização constante de todos os restritivos 
				aspectos canônicos a que nos acomodamos.Matéria, onde 
				permaneces, onde repercutes? Desabrigar-nos é uma nobre função 
				da arte, que jamais deve indicar caminhos, mas, antes, pôr em 
				dúvida todo e qualquer caminho. Este é o grande vetor da 
				revolução surrealista. Se não foi levado a termo, em alguns 
				casos, por signatários do movimento, não cabe anular as forças – 
				em benquista diversidade – empenhadas em tal empresa. Tem sido 
				imensa a contribuição de Isabel Meyrelles neste sentido. 
				
				Teremos, 
				afinal, a oportunidade de ler as esculturas e ver os poemas. Há 
				sutilezas nas duas linguagens, que parecem mais perceptíveis 
				quando as conhecemos em igual medida. A comparação denuncia uma 
				subversão de equivalências, sim, porém, aqueles aspectos já 
				mencionados, o requinte do humor e a intensidade lírica, 
				expressam uma intimidade tal que certamente deliciará quem venha 
				a confrontar as duas linguagens, sem jamais esquecer o agudo 
				lembrete de um de seus poemas: “Atenção ao degrau, / um bom 
				passageiro / é um passageiro morto”. 
				
				  
				
				  
				
				NOTAS 
				
				1. 
				O 
				Surrealismo em Portugal, 
				de Maria de Fátima Marinho. Imprensa Nacional/Casa da Moeda. 
				Lisboa, 1987. Este livro, apesar de ser documento abrangente em 
				torno do surrealismo português, encontra-se demasiado pautado 
				por aspectos canônicos, não desvelando circunstâncias mais 
				essenciais, peculiares, que melhor caracterizam a aventura do 
				Surrealismo em Portugal. O comentário claramente equívoco sobre 
				Isabel Meyrelles aqui aludido, por exemplo, é a única menção 
				crítica a esta poeta no decorrer das 740 páginas desse livro. 
				
				2. A 
				compilação da obra poética de Cruzeiro Seixas, prevista para 5 
				volumes, vem sendo publicada pela Quasi Edições, desde 2002. 
				
				3. Texto para 
				catálogo da exposição "O universo dos sonhos". Galeria São 
				Mamede. Lisboa, maio de 2004. 
				
				
				4. Le coupable. L’Alléluiah, de Georges Bataille. 
				Editions 
				Gallimard. Paris, 1973. 
				
				5. 
				Trata-se de resposta a 
				Rien o 
				quoi? 
				(Paris, 1970), questionário preparado por Vincent Bounoure sobre 
				atualidade do Surrealismo como atividade grupal. Cesariny faz 
				este comentário lúcido e provocativo a partir do tema 
				cadáver-esquisito, que se aplica ao nosso assunto: 
				"Verdadeiramente, o primeiro ‘cadáver-esquisito’, o primeiro 
				texto escrito a dois, os primeiros protestos coletivos – há 
				quanto tempo já? – são o germe de uma revolução que a revolução 
				não quer: o amor, o prazer da descoberta, o sentido de uma vida 
				exaltada e exaltante – nada de semelhante pode se encontrar nos 
				programas revolucionários oficiais. Não sabemos sequer se um dia 
				tais programas quererão dar conta dos ‘cadáveres-esquisitos’ da 
				nossa existência."  
				
				6. 
				Sugestão de leitura: 
				Homenagem 
				à realidade, 
				de Cruzeiro Seixas [org. Floriano Martins]. Escrituras Editora. 
				São Paulo, 2005.  |