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				Em Carcavelos, com Fiama Hasse Pais Brandão 
				
				Júlio Conrado
				A 
				obra de Fiama Hasse Pais Brandão, poeta portuguesa nascida em 
				1938, é considerada uma das mais significativas da geração 
				revelada nos anos sessenta. A escritora vive neste momento o 
				drama de uma doença prolongada, circunstância que trouxe para 
				primeiro plano trabalhos de datação mais recente nos quais há 
				aspectos biográficos de que ressalta uma íntima relação com o 
				lugar da infância e da adolescência – uma pequena quinta de 
				Carcavelos, em cujo portão de ferro se lê ainda o nome: 
				Vivenda Azul.  
				A sua obra 
				mais próxima do que geralmente se entende por autobiografia é no 
				entanto o romance intitulado Sob o Olhar de Medeia, 
				publicado em 1998. Aí, o mundo que assiste ao crescimento de 
				Marta, a protagonista, é mimado de modo tão ostensivo dos poemas 
				em que o “sujeito” mais claramente se assume como produtor de 
				sentido que somos tentados, numa primeira aproximação ao 
				romance, a encará-lo como um daqueles textos que mais parecem 
				autobiografia escondida com o rabo de fora - aquilo a que Helder 
				Macedo chama “romance vindimado”. Uma observação mais atenta 
				propiciará, em todo o caso, inflexões na viagem da leitura que 
				permitirão pelo menos duvidar que todo o romance seja 
				confessional ou reprodução fiel da experiência vivida. Desde 
				logo, o título levanta suspeitas. Medeia é uma das duas bruxas “ 
				boas” da Antiguidade Helénica – a outra, como se sabe, é Circe. 
				O apelo ao concurso da tutela de Medeia implica o uso de poderes 
				de transfiguração cujo alcance excede a capacidade de previsão 
				do receptor desprevenido do texto. 
				Em 
				princípio, Marta é Fiama, mas esta é também a Medeia detentora 
				do dom de manipular o passado para o reconstruir reinventando-o, 
				limpando-o de elementos disfóricos e introduzindo na descrição 
				dele artifícios de efabulação de base onírica ou comprazendo-se 
				na viciação imaginativa dos dados da memória. 
				A 
				referencialidade do lugar perdura, todavia, na narrativa, com a 
				exactidão de um retrato sem legenda. A escassez de informantes 
				desencoraja o estabelecimento de coordenadas identitárias 
				capazes de definirem administrativa e socialmente o sítio – só 
				em dois dos últimos poemas de Fiama, com a menção de terem sido 
				escritos em Carcavelos, se vislumbra a contextualização 
				toponímica da quinta. Sítio que é parceiro num processo de 
				aquisição de conhecimento que decorre à margem da faculdade de 
				nomear e de socializar, pois prevalece o ensinamento do 
				mestre-escola de Marta, mentor da aprendizagem individual do 
				mundo pela leitura dos mitos da Antiguidade. A quinta é a 
				quinta, a Vila é a Vila, a praia é a praia, entidades 
				inomináveis, “povoadas” por Ulisses e pelos Argonautas em 
				demanda do Velo de Ouro. A ausência da crispação que a hegemonia 
				do nome cristaliza à roda de um certo modo de certificar o 
				espaço cénico do paraíso, recorda a lição dos primitivos, 
				radicalmente ligados à terra, alheios ainda a leis de 
				organização civilizacional que virão um dia transformar em mito 
				esse convívio directo com os elementos primordiais – a luz, a 
				terra, o ar, a água, o fogo – aqui recuperados pelos poderes 
				mágicos de uma feiticeira culta para dourar a arrumação 
				literária de um singular percurso de descoberta. 
				Poderá 
				então falar-se, lendo o romance de Fiama, de um lugar sem nome, 
				paridisíaco, de flora variada, exuberante, onde elementares 
				saberes de cultivo e artes ancestrais de pastoreio combinam com 
				a proximidade do mar e com as inclemências ou as amenidades 
				climatéricas na constituição do palco sobre o qual as vidas de 
				Marta e de Fiama são representadas em harmonia plena com a 
				Natureza. Neste lugar não há luta de classes. A relação 
				servo-amo perde sentido ante a inexistência de conflito e de 
				aspirações reivindicativas por parte de quem se submete, o 
				Caseiro, a quem submete, o Senhor da Casa, ou a Voz, como 
				aparece sibilinamente caracterizado no processo revelador das 
				tensões entre pai e filha.  
				Assim, da 
				contiguidade diferenças sociais/Natureza viva 
				ressalta a naturalização dessas mesmas diferenças que do futuro 
				o olhar de Medeia torna ainda mais assépticas e destituídas de 
				perigo. Os sinais de distúrbio e de fractura vêm, então, de 
				Lázaro, o filho do Caseiro, ciumento dos desvelos prodigalizados 
				pelo pai à Menina; dos rapazes pobres incitados por ele, Lázaro, 
				a assaltarem a quinta para o roubo da fruta; dos lenhadores 
				furtivos causadores do acidente de Jesus devido a um abate 
				clandestino de árvores; da própria Marta, ao ser capaz de 
				detectar na austeridade paterna cambiantes despóticas a que 
				instintivamente se opõe e que o omnipresente olhar de Medeia não 
				desautoriza, evita ou desdramatiza. Mas estes são focos isolados 
				de revolta facilmente neutralizáveis pelas defesas do sistema, à 
				época vigente, baseado no direito da propriedade, na 
				desigualdade entre ricos e pobres e na supremacia do homem sobre 
				a mulher – esta última consubstanciada na submissão da mãe de 
				Marta às “orientações” do Senhor da Casa, com grande indignação 
				da filha, que não encontra na que lhe deu o ser a aliada 
				desejada contra o “ditador”. 
				Sabemos 
				que Marta abandonará um dia este seu paraíso vigiado, este mundo 
				paradoxal de clausura e conforto típico de uma alta burguesia 
				que prosperou à sombra da ditadura, para dilatar os horizontes 
				de conhecimento entregando-se a causas edificantes, merecedoras 
				de intervenção cívica activa. Aquela que Fiama define como uma 
				“geração quase perdida” sacode-se do torpor para, 
				independentemente da origem de classe, se bater contra a 
				privação da liberdade de expressão do pensamento num quadro de 
				repúdio pela guerra colonial, esse fenómeno que agitou a 
				consciência da juventude portuguesa nos anos sessenta. O lance 
				final de Sob o Olhar de Medeia oferece-nos a imagem de 
				uma Marta integrada numa manifestação estudantil que sobe a 
				Avenida da Liberdade, em Lisboa, ao encontro da polícia de 
				choque que a tiro tenta dispersar os contestatários.  
				Sabemos 
				que Fiama, percorridos os caminhos da participação cívica, do 
				amor, da maternidade, da dor, da realização literária por 
				domínios tão diversificados como o teatro, o ensaio , a 
				tradução, a poesia e o romance, regressa à quinta para, num 
				último sobressalto suscitado pelo apelo das origens, acertar 
				contas com os seus fantasmas mas também glorificar o lugar da 
				aprendizagem da vida, sempre surpreendente na sua capacidade 
				sasonal de renovação, sempre caixa de ressonância dos ruídos 
				trazidos pelos ventos do norte ou pelas brisas oceânicas que 
				nela despertam as vibrações do mundo reminiscente lavado pela 
				ternura do olhar novo e sábio com que o revisita. 
				Os últimos 
				livros de poemas de Fiama – As Fábulas, Espístolas e 
				Memorandos e Cenas Vivas – são um diálogo permanente 
				com o lugar e os seus espíritos, um perscrutar minucioso de 
				pistas que o cheiro da terra e a configuração dos espaços mantém 
				intactas para que possa rescrever-se no soberano respeito por um 
				imaginário criado a partir desse chão o último capítulo de um 
				grande amor por ele. Em dois poemas lê-se a palavra 
				Carcavelos. Num endereço postal lemos uma marca precisa: 
				Vivenda Azul. A quinta ainda lá está, não se sabe por 
				quanto tempo mais assim, nas mãos de outros proprietários. Mas o 
				que dela resta como testemunha de uma presença humana singular 
				já só existe nos livros que as descrevem a ambas em versos 
				luminosos e apaixonados. |