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COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Fiama Hasse Pais Brandão | (1938-2007)

Em Carcavelos, com Fiama Hasse Pais Brandão

 

Júlio Conrado

A obra de Fiama Hasse Pais Brandão, poeta portuguesa nascida em 1938, é considerada uma das mais significativas da geração revelada nos anos sessenta. A escritora vive neste momento o drama de uma doença prolongada, circunstância que trouxe para primeiro plano trabalhos de datação mais recente nos quais há aspectos biográficos de que ressalta uma íntima relação com o lugar da infância e da adolescência – uma pequena quinta de Carcavelos, em cujo portão de ferro se lê ainda o nome: Vivenda Azul.

A sua obra mais próxima do que geralmente se entende por autobiografia é no entanto o romance intitulado Sob o Olhar de Medeia, publicado em 1998. Aí, o mundo que assiste ao crescimento de Marta, a protagonista, é mimado de modo tão ostensivo dos poemas em que o “sujeito” mais claramente se assume como produtor de sentido que somos tentados, numa primeira aproximação ao romance, a encará-lo como um daqueles textos que mais parecem autobiografia escondida com o rabo de fora - aquilo a que Helder Macedo chama “romance vindimado”. Uma observação mais atenta propiciará, em todo o caso, inflexões na viagem da leitura que permitirão pelo menos duvidar que todo o romance seja confessional ou reprodução fiel da experiência vivida. Desde logo, o título levanta suspeitas. Medeia é uma das duas bruxas “ boas” da Antiguidade Helénica – a outra, como se sabe, é Circe. O apelo ao concurso da tutela de Medeia implica o uso de poderes de transfiguração cujo alcance excede a capacidade de previsão do receptor desprevenido do texto.

Em princípio, Marta é Fiama, mas esta é também a Medeia detentora do dom de manipular o passado para o reconstruir reinventando-o, limpando-o de elementos disfóricos e introduzindo na descrição dele artifícios de efabulação de base onírica ou comprazendo-se na viciação imaginativa dos dados da memória.

A referencialidade do lugar perdura, todavia, na narrativa, com a exactidão de um retrato sem legenda. A escassez de informantes desencoraja o estabelecimento de coordenadas identitárias capazes de definirem administrativa e socialmente o sítio – só em dois dos últimos poemas de Fiama, com a menção de terem sido escritos em Carcavelos, se vislumbra a contextualização toponímica da quinta. Sítio que é parceiro num processo de aquisição de conhecimento que decorre à margem da faculdade de nomear e de socializar, pois prevalece o ensinamento do mestre-escola de Marta, mentor da aprendizagem individual do mundo pela leitura dos mitos da Antiguidade. A quinta é a quinta, a Vila é a Vila, a praia é a praia, entidades inomináveis, “povoadas” por Ulisses e pelos Argonautas em demanda do Velo de Ouro. A ausência da crispação que a hegemonia do nome cristaliza à roda de um certo modo de certificar o espaço cénico do paraíso, recorda a lição dos primitivos, radicalmente ligados à terra, alheios ainda a leis de organização civilizacional que virão um dia transformar em mito esse convívio directo com os elementos primordiais – a luz, a terra, o ar, a água, o fogo – aqui recuperados pelos poderes mágicos de uma feiticeira culta para dourar a arrumação literária de um singular percurso de descoberta.

Poderá então falar-se, lendo o romance de Fiama, de um lugar sem nome, paridisíaco, de flora variada, exuberante, onde elementares saberes de cultivo e artes ancestrais de pastoreio combinam com a proximidade do mar e com as inclemências ou as amenidades climatéricas na constituição do palco sobre o qual as vidas de Marta e de Fiama são representadas em harmonia plena com a Natureza. Neste lugar não há luta de classes. A relação servo-amo perde sentido ante a inexistência de conflito e de aspirações reivindicativas por parte de quem se submete, o Caseiro, a quem submete, o Senhor da Casa, ou a Voz, como aparece sibilinamente caracterizado no processo revelador das tensões entre pai e filha.

Assim, da contiguidade diferenças sociais/Natureza viva ressalta a naturalização dessas mesmas diferenças que do futuro o olhar de Medeia torna ainda mais assépticas e destituídas de perigo. Os sinais de distúrbio e de fractura vêm, então, de Lázaro, o filho do Caseiro, ciumento dos desvelos prodigalizados pelo pai à Menina; dos rapazes pobres incitados por ele, Lázaro, a assaltarem a quinta para o roubo da fruta; dos lenhadores furtivos causadores do acidente de Jesus devido a um abate clandestino de árvores; da própria Marta, ao ser capaz de detectar na austeridade paterna cambiantes despóticas a que instintivamente se opõe e que o omnipresente olhar de Medeia não desautoriza, evita ou desdramatiza. Mas estes são focos isolados de revolta facilmente neutralizáveis pelas defesas do sistema, à época vigente, baseado no direito da propriedade, na desigualdade entre ricos e pobres e na supremacia do homem sobre a mulher – esta última consubstanciada na submissão da mãe de Marta às “orientações” do Senhor da Casa, com grande indignação da filha, que não encontra na que lhe deu o ser a aliada desejada contra o “ditador”.

Sabemos que Marta abandonará um dia este seu paraíso vigiado, este mundo paradoxal de clausura e conforto típico de uma alta burguesia que prosperou à sombra da ditadura, para dilatar os horizontes de conhecimento entregando-se a causas edificantes, merecedoras de intervenção cívica activa. Aquela que Fiama define como uma “geração quase perdida” sacode-se do torpor para, independentemente da origem de classe, se bater contra a privação da liberdade de expressão do pensamento num quadro de repúdio pela guerra colonial, esse fenómeno que agitou a consciência da juventude portuguesa nos anos sessenta. O lance final de Sob o Olhar de Medeia oferece-nos a imagem de uma Marta integrada numa manifestação estudantil que sobe a Avenida da Liberdade, em Lisboa, ao encontro da polícia de choque que a tiro tenta dispersar os contestatários.

Sabemos que Fiama, percorridos os caminhos da participação cívica, do amor, da maternidade, da dor, da realização literária por domínios tão diversificados como o teatro, o ensaio , a tradução, a poesia e o romance, regressa à quinta para, num último sobressalto suscitado pelo apelo das origens, acertar contas com os seus fantasmas mas também glorificar o lugar da aprendizagem da vida, sempre surpreendente na sua capacidade sasonal de renovação, sempre caixa de ressonância dos ruídos trazidos pelos ventos do norte ou pelas brisas oceânicas que nela despertam as vibrações do mundo reminiscente lavado pela ternura do olhar novo e sábio com que o revisita.

Os últimos livros de poemas de Fiama – As Fábulas, Espístolas e Memorandos e Cenas Vivas – são um diálogo permanente com o lugar e os seus espíritos, um perscrutar minucioso de pistas que o cheiro da terra e a configuração dos espaços mantém intactas para que possa rescrever-se no soberano respeito por um imaginário criado a partir desse chão o último capítulo de um grande amor por ele. Em dois poemas lê-se a palavra Carcavelos. Num endereço postal lemos uma marca precisa: Vivenda Azul. A quinta ainda lá está, não se sabe por quanto tempo mais assim, nas mãos de outros proprietários. Mas o que dela resta como testemunha de uma presença humana singular já só existe nos livros que as descrevem a ambas em versos luminosos e apaixonados.

[Comunicação apresentada na Convenção da Associação Internacional dos Críticos Literários de Ripi, Itália. 25 de Novembro de 2002.]

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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