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				Emerenciano: O Poeta e o Pintor 
				
				
				
				Júlio Conrado 
				
				
				
				Emerenciano, 
				pintor de méritos consolidados e reconhecidos, é também cultor 
				da palavra escrita. Em poesia dá expressão àquela parte do seu 
				mundo emocional, partilhada pela pintura, de que esta todavia 
				não se reclama em níveis de mobilização excessivos. Mesmo 
				existindo um compromisso entre palavra e cor, verso e traço, 
				semiótica do texto e fulguração visual do signo, o artista 
				reserva à poesia o canteiro do espírito onde ajardina a matéria 
				sensível excedentária do rasgo pictórico. Matéria depois 
				ordenada e encaminhada para as páginas dos livros através dos 
				quais vai acumulando reputação de escritor.  
				
				
				Estamos em presença, provavelmente, de um homem dividido, de 
				subjectividade fendida pelo raio fulminante de duas paixões – a 
				escrita poética e a pintura – que para elas procura estabelecer 
				pontes de modo a criar fios harmónicos capazes de o salvarem dos 
				desalinhos desse duplo preito. Por salvação entenda-se o 
				desaparecimento da angústia vital que se diria submergi-lo 
				enquanto poeta e da qual se resgata pela alegria da pintura. E 
				se falo de “alegria” isso não significa que o pintor possa estar 
				inundado de contentamento enquanto trabalha. Quero dizer que a 
				alegria emana do traço pictórico como resultado de uma atitude 
				positiva ante as dificuldades do processo criativo desde o seu 
				início até ao fim. Contudo, unir as margens do grande rio que 
				corre entre as duas vocações é certamente utópico projecto. E 
				nem se afigura ser qualquer espécie de dialéctica a solução para 
				o caso, visto não existir oposição rígida de contrários mas 
				antes pragmática boa vizinhança entre linguagens estéticas 
				distintas.  
				
				
				Por outro lado, dir-se-ia haver no artista uma mal cicatrizada 
				ferida narcísica, potenciadora da dispersão de nexos, que torna 
				o poeta refém do pintor, em termos formais. Se se considerar que 
				a pintura de Emerenciano é, na sua inspiradora sintaxe e 
				no seu efeito de esplendor, poética, isto é, que se pode 
				dar ao luxo de prescindir da palavra para ser também 
				poesia, talvez seja possível encontrar no peso que o texto 
				escrito tem na obra do pintor o aceno magnânimo deste último ao 
				vate em ascensão, como que delegando nele fatia considerável do 
				seu prestígio. Julgo não escandalizar ao defender que a poesia 
				de Emerenciano beneficiaria com a maturidade (leia-se ênfase 
				criadora) que a sua pintura exibe. Sobram com certeza ao poeta 
				as qualidades que, bem traduzidas em palavras, levarão à 
				superação esperada, mormente no registo tão português da 
				amargura (veja-se o Só, etc.): a vida interior sofrida; a 
				morte omnipresente; o verso sibilino que dá resposta ao 
				hipotético ou real cerco social hostil; o paralelismo com “o 
				homem revoltado” em assumida afinidade camusiana; esse desgosto 
				tão próximo do desassossego de Bernardo Soares que inquieta mais 
				do que insubordina; o pendor para a censura austera aos que 
				gravitam em torno da grande arte sem jamais cederem à tentação 
				de a saborear. 
				
				
				A poesia de Emerenciano enjeita a referencialidade estrita, 
				subtraindo-a à acomodação fácil à lógica das coisas. Se não tem 
				na mira, que se vislumbrem, horizontes astrais, também não se 
				fica pela superfície rasa. Tudo aponta para que o seu alvo se 
				situe numa zona do ser – o chão secreto do “meu secreto ser” – 
				governada por sombras, silêncios, às vezes raiva, outras vezes 
				revolta e ainda um fundo persistente de tristeza, talvez mais 
				consequência de litígio com o social envolvente, alheio (ainda? 
				talvez?) à especificidade da sua arte, do que resultado de 
				improvável aliança da palavra escrita com as vibrações da 
				coreografia estelar ou qualquer outra mediação de 
				transcendência.  
				
				
				Da presunção de alguém que quer abarcar o mundo que o não abarca 
				emergem sintomas de crise existencial. O monólogo do sujeito 
				briga com as realidades em trânsito nas cercanias. Ao mesmo 
				tempo os desesperos nem sempre contidos, soam, amiúde, indóceis. 
				Apesar de subterrânea, e das tentativas de voo para as alturas 
				serem no geral equívocas por nelas estar previamente declarado o 
				“regresso” à normalidade “decepcionante”, na querela psicológica 
				de um desajuste social se vai mapeando a memória autobiográfica 
				do artista. Da lírica de Emerenciano brota um exasperado 
				mal-estar ôntico materializado no verso curto, certeiro, pronto 
				para o exercício do direito à indignação e deste, sem dúvida, 
				braço armado. É uma poesia protegida por um grande rigor na 
				preparação da estrofe a que se agrega a escolha de um 
				vocabulário enxuto, veículo da clareza clássica, e cujo desafio 
				principal é, talvez, encontrar para essas bem identificadas 
				coordenadas estruturais mensagem capaz de pôr em causa a tirania 
				da palavra e do seu reportório, jamais exaurido, de significados 
				e representações. Mas a palavra não deixa ao artista a liberdade 
				de que ele desfruta na pintura, em que um discreto signo pode 
				dar azo a múltiplas interpretações, associações, especulações, 
				etc. A palavra escrita retém, exige, coage. No verso dilacerado 
				entrevêem-se sinais da intranquilidade do poeta ao validar a 
				provocação deste a todo um historial do “contínuo”, do 
				“antecedente e do “consequente”, da “lógica diacrónica”, etc., 
				que constitui também repto à poesia formalmente bem comportada, 
				racionalizada no sentido da “compreensão” – do seu “triunfo 
				prático”, para usar a oportuna definição de Eduardo Lourenço. 
				Neste último caso, o aparecimento espontâneo de conteúdos sem 
				relação aparente entre si dinamita o local de encontro com o 
				leitor. São contribuições para que uma certa incomodidade no 
				acto da leitura vá juntar-se à depressiva alteridade do Mesmo e 
				do Outro, lá onde se recupera como eco persistente a intromissão 
				do verbo crispado remetendo para um sarcasmo fruto da sua 
				própria circunstância.  
				
				
				Em alguma da poesia ainda inédita do autor, a que tive acesso, 
				assiste-se uma vez mais ao jogo das perplexidades do homem que 
				cumpre novo segmento da viagem ao fim da (sua) noite, deixando 
				vislumbrar desejos só parcialmente realizados ou quiméricos 
				anseios por alcançar. De uma maneira ou de outra o sentimento 
				trágico da existência manifestado através de persistente 
				interrogação sobre o que falha na procura “da similitude”, e 
				acerca dos “tus da conveniência” que esmagam os “tus da procura 
				essencial”, ou a busca na pureza da infância do alento “para 
				sustentar a criança que me habita”, ou ainda a premonição da 
				herança possível na morte “quando já sepultado/começa a 
				descarnação/para deixar a única/fortuna indesmentível/do meu 
				corpo/ossos”, projectam no leitor a imagem de um ser amargurado, 
				entregue à interpelação que isole e esclareça as causas da sua 
				solidão.  
				
				
				Correlacionando a poesia de Emerenciano com a sua pintura, 
				coloco-me, quanto a esta - com toda a humildade - na posição do 
				receptor atingido pelo prazer da descoberta de algo que 
				simultaneamente arrebata e apazigua. Sim, a pintura de 
				Emerenciano apela para sensações festivas e para a reflexão 
				sobre as intertextualidades tonificantes que nesta matéria são 
				legíveis. A fruição estética aliada à gratidão que, pela sua 
				finura e requinte, ela suscita, é a quota mínima do que é lícito 
				manifestar em sinal de apreço e congratulação. 
				
				
				Por este flanco irrompe a contradição maior – e fascinante – de 
				um discurso poético pesaroso alternando com uma pintura de 
				delicado traço que é celebração perfeita do júbilo: cores 
				tépidas e confortáveis, visualidade exuberante, subtis 
				aberturas, no quadro, à palavra escrita, fixando na tela, como 
				confissão feliz, a lealdade do autor às formas de arte 
				predilectas, aqui em interlúdio cordial de comunicação, numa 
				entreajuda empenhada na exaltação da beleza que põe à mostra o 
				lado solar de um “outro” Emerenciano.  
				
				
				O que acrescentará a poesia de Emerenciano à pintura de 
				Emerenciano enquanto disciplinas intrínsecas ao carácter do 
				artista, é enigma ainda por resolver. Para já, fica a pairar a 
				ideia de que a pintura emerenciana se instalou num patamar de 
				excelência, apreensível, por exemplo, nas emoções e sensações 
				que provoca. E que a poesia emerenciana ainda não fechou o 
				capítulo do seu crescimento; quando atingir o zénite, então se 
				verá até que ponto e para que paragens evoluiu esta 
				impressionante alteridade.   |