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COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

BANDA LUSÓFONA | BRASIL

Donizete Galvão | (1955)

Donizete Galvão, poesia e originalidade

Floriano Martins

1.

A originalidade de um poeta está intrinsecamente vinculada à sua capacidade de rebelar-se contra o convencionalismo técnico e o emprego comum e abusivo de certos temas. Os embates em torno de certas sigilosas proibições, a exemplo da distinção de uma linguagem poética em relação à linguagem prosaica, bem como o recurso a fontes diversas de influência, estímulo ou inspiração (orações, drogas artificiais ou a escritura automática, e as abusivas discussões acerca de sua aceitabilidade), entre outras, caracterizam-se como elementos dimensionadores, nas distintas épocas em que atuaram, do conceito de originalidade. Em tal sentido o surgimento do verso branco constitui inigualável conquista.

Embora sendo aspecto indispensável na definição de uma obra poética, não se pode nunca esquecer que seus excessos conduzem a uma bizarria deplorável. Obcecado por uma falsa idéia de originalidade, é comum o poeta destruir a si mesmo, afastando-se de uma constante reveladora da memória verdadeira, do outro em si, da identidade comum a todos os homens. Também igual obsessão converte o discurso poético em retórica, transformando o poeta em mero articulador de enredos (no uso conseqüente dos novelos técnicos), a exemplo do ficcionista em nosso mundo contemporâneo. Não se trata de situar a originalidade como uma dissonância, mas sim de lembrar que seu verdadeiro sentido reside mais em uma atitude de despojamento do que propriamente de deliberação engenhosa.

A colocação acima fatalmente nos leva a um clássico erro de análise acerca das relações entre espontaneidade e construção, aspecto bastante recorrente em um universo de deturpações tão comum quanto o que tem regido sobretudo o curso mais recente da poesia brasileira. Exemplo disto é a utilização do verbete rigor como sendo propriedade privada do dicionário concretista. A obsessiva inclinação construtivista do Concretismo certamente levou a crítica a supor - e a alimentar com tal equívoco os novos espíritos poéticos em formação - que o rigor somente seria possível a partir da ação de tal escola, ou o que seria ainda pior: do vínculo dos novos poetas à mesma.

Na perseguição desesperada de originalidade podemos citar um outro equívoco na história recente de nossa poesia, embora de proporções menos danosas, visto que só fez mal a si mesma, que foi a denominada “poesia marginal”. Neste sentido, nunca estará demais mencionar a lucidez com que observa Ivan Junqueira que esta geração “se marginalizou ao comungar uma poética que - com raras exceções - jamais levou a parte alguma e que, em certo sentido, nasceu morta”. O certo é que nossos marginais dos anos 70 mais pareciam um bando de hippies desafinados do que propriamente um acontecimento na esfera poética. Insistindo em fazer a diferença, só conseguiram ser banais. Os poucos estudiosos que se detiveram no assunto referem-se a uma dicção mesclada como característica principal dessa geração - tentando dar a ela uma conotação histórica e com isto gerar teses e novos afluentes de um mesmo equívoco -, esquecendo-se que em tal contexto já se articulava a conhecida Beat Generation, nos Estados Unidos, e que dali provinham as fórmulas que aqui causaram espanto e falso sentido de originalidade. Acrescente-se ainda que os marginais brasileiros não possuíam nenhuma intenção programática.

Aceito o fato de que o fundamental de nossa poesia aconteceu sempre à margem das correntes literárias, ou seja, de que seus nomes verdadeiramente fundamentais encontram-se alheios a ditames escolásticos ou geracionais, quero aqui mencionar um poeta em particular, aproveitando a ocasião do lançamento de seu terceiro livro, Do silêncio da pedra (1996). Refiro-me ao mineiro Donizete Galvão (1955), que antes já havia se destacado pelo prêmio que recebeu da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) quando de sua estréia com Azul Navalha (1988), também indicado para o prêmio Jabuti do mesmo ano. Entre um e outro publicou As faces do rio (1990). Galvão é um exemplo coerente daquilo que Robert Graves defendia como característica principal de um grande poeta, no sentido de sua concepção como um autor original, ou seja, a definição de uma simplicidade a partir da ação poética em si. Desta maneira, seguindo a lúcida observação de Graves, não deve o poeta dirigir-se ao rei, ao chefe da congregação poética ou ao povo. O objeto de nosso encontro com a poesia é a soma de todas as confluências e influências. Nenhum poeta se faz alheio a este sentido natural de originalidade.

A poesia de Donizete Galvão, singularíssima em um universo antipoético standardizado como tem se mostrado a poesia brasileira nas últimas décadas, traz uma vez mais à cena a noção de um caos individual, terra inóspita onde o homem faz a diferença, onde a dor de um será unicamente a sua própria dor e não o emblema vazio de uma dor geral explorada pela mídia. Toda a sua poesia é o lugar desta diferença, embate com as forças destrutivas de seu próprio tempo para que o homem liberte-se do estigmatizante delito do esquecimento de si mesmo, que não se transforme em uma pedra silenciosa. Neste sentido de busca, ressalta cenas individuais, refere-se a obras que lhe influíram, conversa com aspectos cotidianos da vida urbana etc. Tudo ali põe em discussão a matéria precaríssima do social como generalização banal de atitudes do ser humano.

Por outro lado, a poesia de Donizete Galvão também se esmera na consolidação de uma linguagem poética que não seja movida pelas exigências editoriais ou as padronizações convenientes a um enquadramento histórico nas proporções em que a história se faz conhecer entre nós. Como ele próprio diz, “os editores, com as raras exceções dos apaixonados pela poesia, fogem dos autores como se estes tivessem sarna”. Neste seu terceiro livro, Do silêncio da pedra, observa Paulo Vizioli, logo no prefácio, a título de uma obviedade beirando a banalidade, como ele próprio faz questão de frisar, que o poeta “não só tem o que dizer, mas que também sabe como dizê-lo”. Lembra Vizioli que “não são muitos os poetas que merecem o elogio dessa banalidade”. Está tão correto nesta sua aparentemente óbvia declaração que nos leva a acrescentar, na trilha de parágrafos anteriores, que atingimos um grau tamanho de mediocridade conceitual que temo não ser mais possível a compreensão de algo que fira o patamar mediano de nossas insalubres realizações.

Um artigo normalmente pede que falemos do autor em questão, que citemos seus versos, que elogiemos seu traçado no chamado ranking poético, coisas do gênero. Quando penso na poesia de Donizete Galvão - em seu rumor órfico, no sentido vertical, de um verdadeiro desafio que exige esta poesia à sua revelação, ao mesmo tempo em que se apresenta em estruturas simples, despojada de um aparato técnico viciado mais no verniz dos malabares do que no salto em si, alheia absoluta a um universo elíptico das últimas apresentações circenses da poesia brasileira -, penso sobretudo no despojamento desses vícios tão comuns a nossos erros estilísticos, penso em um poeta que não tenha sido degenerado por sua cultura, um poeta que não tenha sido limitado por sua compreensão de abrangência do expressivo, um poeta que não tenha sido obstaculizado pelos instrumentos precários da concepção poética que deflagra seu tempo.

Ao publicar o volume de estréia, Azul navalha, a ele referi-me como um inventário da agonia - partilha de abismos contra o limite factual de nossas ruínas pessoais, as ruínas essenciais da história da humanidade - e um elogio da catástrofe urbana que nos limita e define. Observação similar lhe fez Paulo Octaviano, ao prologar o livro seguinte, As faces do rio, mencionando ali a evidência de um “acerto de contas com o passado”, salientando que o poeta “devora os despojos dos seus mortos, como verdadeiro antropófago da memória daqueles que a correnteza levou”. E uma vez mais encontramos igual definição, desta feita assinada por Paulo Vizioli, na apresentação deste livro mais recente, Do silêncio da pedra: “Até a linguagem da água nasce dos seus embates com o leito de rochas. E é esse o processo que esta poesia reproduz, ao recorrer à realidade para dar voz à mesma realidade. Ela trabalha a pedra. E a pedra trabalhada - a pedra lisa - se transmuda em arte, em algo muito acima da transitoriedade e do sofrimento.”

Portanto, a rigorosa estrutura que reconhecemos na poesia de Donizete Galvão define-se sobretudo como uma disciplina da expressão poética, uma disciplina do dizer, aliada à suprema aventura da perplexidade, do fulgor das descobertas. O próprio poeta nos lembra, em entrevista que lhe fiz: “Para mim, a escrita tem sempre um elemento de perplexidade, espanto e mistério. Claro, há uma técnica que se ergue e é consumida ao terminar o poema. Mas a cada vez que escrevo não penso que domino o instrumento como o artesão. No caso do artesão, ele fica melhor com os anos. Com a poesia, nem sempre acontece. Bons poetas cometem poemas horríveis no fim da vida. É claro que há essa artesania na poesia, mas não acredito que a técnica se apure com a repetição (como o Pintor na época das guildas). O equilíbrio difícil é combinar as duas coisas. Muitas vezes a poesia (excessiva ou como pura técnica) mata a poesia. Enfim, tudo se resume diante da humildade do poeta diante de um poder maior, o da língua.”

Entendo a poesia de Donizete Galvão como o exemplo maior que se pode ter hoje de uma dupla observação: de um lado a recusa de seu verso em participar da argamassa estilística ditada por seu próprio tempo, seja pelo teor obsessivo de uma busca da originalidade ou pelo engatado oportunismo editorial em torno desta questão; de outro, sua convicção de que os poetas devem sobreviver a todo tipo de abuso. Não erra em sua arte poética, ciente da voltagem da parábola que encerra a passagem do homem pela terra. Reata a poesia a suas origens, ao religare original. Não é o poeta das Minas Gerais ou mesmo o exilado em São Paulo. Sua relação com a poesia é a mesma do homem consigo mesmo. Uma relação órfica, que busca a originalidade do ser, a originalidade da pedra.

 

2.

Algo de extremamente meritório na passagem do tempo: a confirmação de uma voz poética. Fala-se de espaço exíguo na imprensa para a poesia e estou inclinado a acrescentar aqui um problema ainda mais grave: a distorção sistemática dos valores poéticos, uma entronização forçada de epígonos de toda sorte e um corporativismo atuante que impede todo e qualquer comprometimento com a verdade dos fatos, anulando assim a mínima réstia de indignação possível.

Em recente entrevista ao jornal O Globo, José Paulo Paes menciona Donizete Galvão entre alguns, segundo ele, importantes poetas atuais. Paes incluiu recentemente em seu livro Os perigos da poesia (1997) um digno estudo sobre a poética de Donizete Galvão. No entanto, o renomado crítico, seja neste seu livro ou na referida entrevista, cita ainda outros poetas de menor importância, o que me parece comprometer o entendimento que o pobre leitor possa vir a ter acerca do panorama atual de nossa literatura. Neste mesmo sentido, um outro caso recente veio da pena de Wilson Martins, ao destacar em entrevista dois nomes na poesia cearense: Soares Feitosa e Adriano Espínola, nivelando-os. Se por um lado acerta ao perceber uma nova articulação do epos na poesia de Adriano Espínola, por outro se deixa confundir com as ramagens parnasianas necrosadas - mera pieguice circense - de uma figura de retórica como é o caso de Feitosa.

Ao que parece, retomemos, pior que o espaço exíguo destinado à poesia na imprensa é sua má utilização, que nos tem dado a impressão de sequer haver poesia. Além do que vivemos sob expectativa do surgimento quase diário de uma grande expressão poética. Proliferam livros de toda espécie. Surgem nomes do nada. Afilhados de toda ordem. Dão entrevistas, montam oficinas literárias, redigem teses etc. A poesia suporta essa reles evidência. Feliz mesmo fica somente no tempo certo, quando confirma-se uma voz e define-se um diferencial.

Acaba de ser lançado A carne e o tempo (1997), poemas de Donizete Galvão. Ali o poeta mineiro encontra-se uma vez mais à vontade para seguir em seu precioso derrame lírico. A carne e o tempo é seu quarto livro publicado e confirma sobretudo uma concentração de sentido, uma visão crítica acirrada acerca de seu próprio tempo, escrita tecida a partir de uma refinada ironia, verdadeira mina de idéias poéticas lapidadas com o vigor necessário para que o rigor perpetue. Como ele próprio diz logo no início do livro, “a carne come sua própria fome”. Eis como a grande poesia se realiza: devorando a si mesma.

A poética de Donizete Galvão afina-se pelo diapasão da mandala. Remonta sempre a si mesma, à ambiência de sua memória poética, de forma concêntrica e meditativa. Seu frescor liga-se à necessidade de sentido. Nele, a evocação da memória não circula sem a sutileza do recorte irônico. Há ali uma severa concentração da matéria orgânica de que é feita. Prova disto é o poema “Golem”, que diz: “Ficar só não é bom. / Para espantar o tédio, / convém criar um homem / que encene em sua carne / o espetáculo da queda.” Essa jóia lírica é uma lição sublime a todos os encurtadores de versos de nossa fanfarra dominical.

Qual o objeto da meditação de Donizete Galvão neste seu novo livro? Aparentemente os efeitos corrosivos do tempo sobre a carne, embora seja mais ampla sua investigação, abrangendo os sutis engastes e desgastes da memória. Assim é que, com absoluto domínio de seus meios, o autor nos entrega alguns poemas perfeitos, tais como “Segunda meditação da carne”, “Parque de ídolos”, “Círculo”, “Domínio da noite” e “Quarteto em K”.

Não basta, contudo, essa leitura à poesia de Donizete Galvão. Requer mais. A forma como nomeia a memória de seus interiores: sua infância, idas e vindas em relação ao passado. O diálogo animado pelas imagens: uma poética que desliza em granulações de imagens de seu tempo. Os recortes da memória: afeita a uma polifonia sem, no entanto, despir-se da essencialidade transfiguradora de uma visão estética do mundo. Em poema dedicado à adorável filósofa espanhola María Zambrano, deixa claro: “língua solta não apresenta serventia”.

Ao finalizar um poema intitulado “Círculo”, Donizete Galvão como que definiu sua própria intencionalidade estética: “A Deusa devora a todos / porque quer o Corpo / e sua usina de desejos.” Não é outro o domínio de toda grande poesia. Na verdade, os 51 poemas de A carne e o tempo não fazem senão confirmar que um grande poeta não surge a qualquer momento. Acabemos com nossa ansiedade mundana pela quantidade. Concentremos portanto um pouco nossa dispersa atenção nos versos precisos e preciosos de Donizete Galvão. A poesia brasileira passará melhor com eles.

 

 

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1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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