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				Cruzeiro 
				Seixas: A porta do 
				mistério 
				
				  
				
				
				Floriano Martins 
				
				  
				
				Em 
				uma carta enviada a Cruzeiro Seixas, em 1966, lhe escreveu 
				dizendo Laurens Vancrevel que “cada um dos teus poemas é uma 
				mandrágora, cada palavra é uma esfinge”. E entrelaça-se nesta 
				observação o mítico com certa condição afrodisíaca da poética de 
				Cruzeiro Seixas, no que ela tem de intensa capacidade de lidar 
				com as forças mais íntimas, revelando-lhe sua vitalidade 
				original. Mescla, portanto, enigma e erotismo, signos que lhe 
				definem tanto poética quanto plasticamente, uma vez que o 
				amálgama é tão vigoroso que, a exemplo do que se passa também 
				com o chileno Ludwig Zeller, por momentos se confunde qual mundo 
				nos habita, se o poema ou o desenho, a collage, a pintura. 
				
				Este 
				momento de perplexidade alude a um sentido de eternidade que 
				sugere ser nossa única maneira real de estar no mundo. Através 
				dele, Cruzeiro Seixas desperta-nos para o convívio com o 
				maravilhoso que constitui a existência humana. E o faz por 
				estalos cortantes da metamorfose que aplica às suas imagens, que 
				não são propriamente deformações ou distorções, mas antes uma 
				ousada oferta ou vislumbre de formas dentro de formas, um 
				bailado de interioridades que se revelam transfigurando memória 
				e hábitos conceituais. E estão ali, no acertado entendimento de 
				Ernesto Sampaio, “como metáforas dos seus sonhos, obsessões, 
				cóleras, temores e desejos, espécie de espelho mágico, 
				alternadamente fasto e nefasto, que desfigura e transfigura as 
				imagens”. 
				
				A obra de 
				Cruzeiro Seixas (Portugal, 1920) está ligada intrinsecamente ao 
				Surrealismo, a esta “vida de imaginação”, a este “certo poder de 
				repulsa e de obstinação” a que se reporta Mario Cesariny em seu
				Final de um manifesto, de 1949. Não cabe aqui historiar 
				as convulsões intermináveis e valiosas do Surrealismo português, 
				mas apenas destacar a presença constante de Cruzeiro Seixas em 
				seus desdobramentos mais viscerais, mesmo tendo em conta a larga 
				ausência, de 1952 a 1964, que equivale aos anos vividos na 
				África, precisamente em Angola. 
				
				A este 
				respeito, não se pode deixar de mencionar um entendimento das 
				viagens como pontos de fuga, ou seja, a idéia de que alguns 
				surrealistas portugueses teriam buscado no exterior um refúgio 
				para si, confirmando certa impossibilidade do Surrealismo se dar 
				em Portugal. Qual realidade é propícia à arte? E com quantos 
				recursos conta um artista para acentuar este abismo entre arte e 
				realidade? A geografia da fuga está situada além, ulteriormente. 
				As viagens de Cruzeiro Seixas para a África, de António Maria 
				Lisboa para a França, de Fernando Lemos para o Brasil, por 
				exemplo, não implicam necessariamente em fugas, exceto no 
				sentido de denúncia de uma sociedade insustentável. Trata-se 
				mais de uma subversão do que propriamente de subterfúgio. 
				 Cruzeiro Seixas tem sido sempre, isto sim, um grande viajante 
				dentro de si mesmo, com percepções singulares em torno do 
				Surrealismo e das oscilações de humor da sociedade portuguesa. 
				Ao final desta antologia, encontraremos alguns aspectos pontuais 
				em termos de sua atuação no Surrealismo, bem como seu admirável 
				sentido de humor e compromisso diante do que faz refletido nas 
				cartas a mim dirigidas e que acompanharam o processo de 
				configuração deste volume. Mas, essencialmente, o que teremos 
				são seus poemas e desenhos. 
				
				Estando 
				diante dos poemas e pensando em termos de tradição lírica 
				brasileira, que sempre repudiou o Surrealismo em quaisquer 
				instâncias, requer lembrar que somos visitados por um tipo de 
				poesia que, a exemplo de René Char, considera-se “um 
				entendimento com o inesperado”. É todo um mundo de descobrimento 
				se contrapondo ao vício da 
				invenção
				
				de nossa 
				lírica. Caberia aqui lembrar Malcolm de Chazal, ao dizer que 
				“não faço literatura: o que faço é contar a vida”. Este mergulho 
				em um abismo onde se pretende descobrir a idade do homem, sua 
				confissão vivente, é o que mais vem à tona na leitura de 
				Cruzeiro Seixas. Sua viagem requer o risco da descoberta e não 
				da anulação. Não se frustrará, portanto, com o que lhe revelem 
				tempo e espaço. 
				
				Trata-se 
				de uma poética de provocação de si mesma, de desafiar-se ao 
				chafurdar no lodaçal da própria existência, desafiar-se a 
				mostrar onde se ocultam o mistério e o erotismo que anunciam as 
				imagens que saltam magicamente de seus versos, por exemplo. Como 
				ele mesmo diz, sua aflição nada “tem a ver com a lógica exigida 
				pelo poema”. Daí que subverta por completo qualquer leitura 
				tópica que acaso se busque em sua poesia. 
				
				A dicção 
				de Cruzeiro Seixas possui tal singularidade que beira o 
				excêntrico em termos de lírica portuguesa. Mas é fato que sua 
				obra plástica ofertou-se melhor a público do que sua poesia, 
				sendo inúmeras as exposições de que participou – individuais e 
				coletivas –, bem como as primorosas edições de catálogos, o que 
				lhe deu imenso reconhecimento nesta área, superior à obra 
				poética, promovida esparsamente ao longo dos anos, embora 
				felizmente agora em plena recuperação com a publicação da poesia 
				completa, que conta, até o momento, com três largos volumes. 
				
				Este 
				grande poeta do maravilhoso, que soube tocar provocativamente os 
				abismos mais suspeitos e desejáveis de nossa existência, é um 
				possuidor possuído de tal riqueza de imagens que apenas nos 
				convida a nos entregarmos a elas, que esqueçamos tudo, toda a 
				demarcação de costumes, e percebamos por fim a magia que podemos 
				sacar de nós mesmos, esta realidade nua que enganosamente vemos 
				demasiado vestida, e que se mostra em seu traje de ação na 
				poética de Cruzeiro Seixas, instância em que mistério e erotismo 
				se apresentam invariavelmente conjugados e em cujo mergulho no 
				mergulho na solidão é de ordem ascética. 
				
				Tem sido 
				um homem intrinsecamente apaixonado pelo Surrealismo, por todos 
				aqueles aspectos essenciais do Surrealismo que lhe iluminam a 
				vida e permitem que respire livremente seu espírito, compreensão 
				de uma revolta inerente e sedução de um mundo que se liberte de 
				amarras de toda ordem. Jamais escreveu um único verso em outra 
				direção. Trata-se de uma dessas figuras míticas, um tipo de mago 
				pertinaz. Uma imagem que naturalmente rejeita, por mais que 
				entenda seu alcance. 
				
				E agora 
				entrá-lo no Brasil, onde um Murilo Mendes, por raro exemplo, não 
				é exposto senão como modismo ou capricho, é risco da mesma ordem 
				de quando se publicou aqui René Char – na belíssima tradução de 
				Contador Borges –, o de passar de todo despercebido pela 
				crítica. Mas qual risco não impera em uma sociedade como a 
				nossa, onde se programa até o último suspiro e tudo em nome de 
				uma contingência carnavalesca onde nada se controla? A idéia que 
				se tinha de fuga em Portugal cai por terra pensando no desastre 
				cultural brasileiro evidenciado por todos nós. Tal 
				circunstância, no entanto, não impede o surgimento de grandes 
				expressões artísticas, de uma margem ou outra do Atlântico. 
				Cruzeiro Seixas é das máximas expressões poéticas de Portugal 
				chegadas até nós.  |