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				Sobre Cristovam Pavia 
				
				
				
				Nicolau Saião 
				
				
				
				Fez 
				no fim do ano transacto 40 anos que o Poeta faleceu. Recordado 
				foi-o por alguns, os que sem dúvida amam a sua poesia luminosa e 
				perturbadora na sua quase ática simplicidade tão cheia de uma 
				vivíssima interpelação ao mundo, às coisas, aos pequenos 
				fragmentos de uma existência cifrada em amarguras e ocasionais 
				alegrias de alguém que, tal como seu Pai Francisco Bugalho, não 
				viveu tudo quanto quis ou quanto merecia.  
				
				
				Mas, no geral do que se convencionou chamar mundo das letras, 
				não houve – porque não podia haver num areópago de escada-abaixo 
				como é o que nos rodeia – conveniente celebração. O que é 
				compreensível, pois os Poetas também vêem medida a sua grandeza, 
				frequentemente, menos pelo ruído que pelo silêncio e a 
				sua melhor honra está precisamente nisso. O mesmo se fez, em 
				diferentes lugares, com Bruno Schulz, com Hans Carossa, com Nuno 
				Guimarães, uma vez que as mundanidades literatas se dão mal e 
				ainda bem com os que só têm de seu o alto talento tão alheio a 
				notoriedades de baixo calibre festejadas pela pedantice literata 
				de determinados milieus societários.  
				
				
				
				*** 
				
				
				Dizia o célebre inquisidor-mor de Richelieu, com um cinismo não 
				isento de senso de humor, “Dai-me uma frase qualquer e 
				conseguirei que ela ponha um baraço ao pescoço do seu autor”. E 
				embora se trate aqui de poesia e de um poeta, talvez faça 
				sentido suspender a respiração por uns segundos. 
				
				
				Porque, com efeito, a poesia é um perigoso ofício. E se não 
				pelas partes de fora, pelo menos pelas partes de dentro. 
				
				
				Será verdade que os poetas são sobreviventes? Talvez sejam -  
				sobreviventes do tal lugar onde se acoita a verdadeira vida a 
				que aludia, entre outros, o sobrevivente de Charleville (Rimbaud). 
				A poesia será também, assim, uma certa arte das retiradas, a 
				forma mais pessoal de combater a adversidade. 
				
				
				Quem diz pessoal diz eficaz. Eficaz, na verdade, porque nisto de 
				coisas de dentro temos de nos haver com presenças muito mais 
				perigosas que os habituais fantasmas do quotidiano. Daí que, por 
				vezes, como (não) queria Cristovam Pavia, só possa haver “saída 
				pelo fundo”. Pelo fundo, pelo meio, por cima, em suma e afinal: 
				pelo lugar onde, no encalço de Flamel, “os touros encantados que 
				deitam fumo e fogo pelas narinas” encontram finalmente a 
				brancura da verdade perseguida. 
				
				
				De Cristovam sei muito pouco. Quer dizer, talvez saiba alguma 
				coisa ou relativamente muito – porque vou a ele inteiramente 
				pelo coração. Como fascinado leitor, primeiro, de uns raros 
				poemas inseridos numa pequena antologia algo precária e, depois, 
				dum livro muito pundonorosamente feito, com os seus poemas 
				completos - publicados, esparsos e inéditos – que li inteirinho 
				num pedaço de tarde de verão, sentado sob uma das nogueiras 
				citadinas em frente do edifício barroco do antigo Hospital da 
				Misericórdia portalegrense. 
				
				
				Cristovam falava (fala) de pequenas coisas, o que é indício de 
				que o fazia de grandes coisas: da morte do seu cão, da luz 
				difusa batendo na parede da casa da velha quinta alentejana dos 
				ancestros, da recordação que sua mãe teria na noite do seu 
				hipotético e afinal sucedido funeral. Coisas assim leves para 
				quem julga que o poeta é uma espécie de artilharia pesada. 
				
				
				E porque o tom em que o fazia é dos mais belos (e estou a 
				lembrar-me da emoção em Rilke, em Hesse, mas também em 
				Marie-Noel), há-de encontrar sempre quem através dele possa 
				olhar as tardes de negrume e, simultaneamente, de inteira 
				claridade onde se vão reflectindo ora um rosto, ora um ombro, 
				ora uma mão escapando ao nevoeiro…  |