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J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

BANDA LUSÓFONA | BRASIL

Castro Alves | (1847-1874)

Castro Alves, hoje e sempre

Lêdo Ivo

O mais belo instante da poesia brasileira é aquele em que, em novembro de 1869, Antônio de Castro Alves, na viagem que do Rio de Janeiro o devolveu para sempre à sua Bahia natal, se debruça na amurada do navio para contemplar o oceano e vê as espumas flutuantes.

Esse momento de silêncio e reflexão do poeta que amava as imensidões e os infinitos não se limitará a sugerir-lhe o invejável título do livro de poemas que ele traz em sua bagagem. É e será um instante epifânico. Enquanto o navio, partido da Baía de Guanabara, rasga as águas do mar, e os sulcos de espuma se sucedem, formando brancos desenhos caprichosos e fugazes, o poeta atinge o mais alto momento de si mesmo, aquele em que os minutos que passam e a breve existência inteira se unem e se completam, numa aliança final.

A vida veloz de Castro Alves sobrevoa, como um pássaro marinho, a multidão das espumas flutuantes. Poeta do mar, como Camões, Castro Alves reconhece na ação perpétua do oceano o movimento da vida, dos seres que amam e odeiam, da sombra e da luz, que se alternam na majestade do universo. É o movimento da sua própria vida, feita de permanência e mudança, ambição e ilusão. Os olhos voltados para as águas, ele é si mesmo e os outros que habitam em sua lira numerosa. A tarde cortada pela proa do navio é ao mesmo tempo a claridade e a noite. E aquela viagem, que ele pressente ser a final, faz-se partida e chegada. E, no ar marinho, o poeta respira o sal do porto derradeiro, que o aguarda.

As ondas que se chocam contra o costado do navio lembram a Castro Alves os aplausos que o cumularam no Teatro Santa Isabel, no Recife, e na Faculdade de Direito de São Paulo. É o mesmo rumor indistinto a rodear a sua lira clangorosa, a serviço dos escravos e da liberdade, já que, romântico até a medula, ele tem o sentimento da revolta literária e política. O porvir se engasta em seu instante. O movimento comicial das ondas e dos homens se muda repentinamente num sussurro, e é como se ele ainda estivesse num leito ditoso e proibido, junto à nudez e aos cabelos desnastrados de uma de suas amadas infiéis. Tudo – a consagração literária e poética, os altos juízos críticos que o reverenciaram no umbral da mocidade, as turbulências de sua ardente vida sentimental, as viagens que o levavam a novos céus e à respiração de novos ares, como se ele fosse um jovem condor em busca de um inencontrável ninho no mais azulado píncaro –, tudo traduz inconstância e mobilidade.

E agora ele está ali, contemplando as espumas que se fazem, se desfazem e se refazem no tumulto do mar fiel e inconstante: o mar que muda sempre, como a alma das mulheres e a vontade dos homens.

O navio que o transporta lhe evoca, pela força da travessia, “O navio negreiro”, em que ele, no voo ambicioso e desmedido, atingira o ponto mais alto da poesia brasileira. Ninguém voara mais alto do que ele nesse voo majestoso em pleno mar, quando toda uma nacionalidade falara pela sua voz inflamada, em suas vozes d’África e também da América, numa lição de indignação humana e magistral aula de arte poética. A sua imaginação conhecia o caminho das pedras e dos corais, que era a arte de fazer poemas, ora arrastada por um turbilhão oratório e hiperbólico, ora limitada ao sussurro de uma meiga confidência.

O poema “O navio negreiro” haverá de ficar na poesia de nossa língua como “Le bateau Ivre”, de Rimbaud. É a magia inexplicável do mistério da arte poética.

Victor Hugo lhe revelara o universo das apóstrofes e antíteses, das imagens pujantes, das prosopopeias, da diversidade rítmica e dos choques vocabulares, que fazem do poema um objeto verbal cercado de uma aura e de uma magia. E ainda o levara a descortinar o valor e a surpresa das menções bíblicas ou mitológicas e da sucessão das civilizações, que, na História, se desvanecem como as brisas. Castro Alves bebe nessa fonte desmesurada com uma sede de beduíno, cometendo a paráfrase afortunada ou procedendo a intertextualizações atrevidas que convizinham com a apropriação censurável. Mas, na travessia linguística dessa lição suprema, o selo da originalidade pessoal fulgura como um sol. Os seus propalados defeitos se fazem qualidades e até lições, e as negligências e estridências haverão de ganhar, com o tempo, um sabor clássico.

Uma nova língua poética alvoreja em seus poemas, que ostentam uma ductilidade, uma doçura, uma sedução antes inexistentes ou apenas afloradas; e o mesmo se haverá de dizer de sua firmeza e rijeza e concretude, em versos que são como as lascas dos penhascos. E a gramática romântica, pejada de licenças e transgressões, impera desembaraçadamente em sua poesia, consagrando a diferenciação, que é um dos fundamentos da nossa nacionalidade.

O navio que costeia a Serra dos Órgãos leva um Rimbaud tropical e a sua alquimia do verbo. Ele em breve irá silenciar-se, sem necessidade de uma temporada na África – mesmo porque, em sua aventura, ele já havia trazido a África para nós, ao narrar em seu poema a saga horrenda dos navios negreiros e o sofrimento dos escravos. E a sua Bahia nativa é a Roma negra.

Ao longe, na linha do horizonte, recortam-se, contra o céu azul e contra as nuvens, as matas e as montanhas que ele foi um dos primeiros a cantar sem que nas folhas dos ledos arvoredos estivesse espargido o orvalho arcádico. Junto às praias esvaídas pela distância e às areias brancas como os seios de Eugênia Câmara, estendem-se os cajueiros e canaviais, cantam as juritis, escondem-se as onças. No convés do navio, Castro Alves busca as referências terrestres do horizonte; e mais uma vez sente e sabe que a poesia é uma arte de ver, uma operação iluminadora. Com os seus olhos gulosos, o poeta vê e escuta – e, trazidas pela brisa marinha, gaivotas se aninham em seu olhar. Ali está a sua pátria, longe e perto; e o salteia a convicção da visibilidade poética que ele deu a tudo o que o cerca: às serranias, às matas e aos pássaros, às borboletas, ao feitiço escondido ou ostensivo das mulheres e ao vaivém ininterrupto do mar, ao sopro do vento, às nuvens, à alma brasileira guardada nas casas e nas igrejas, ao clamor das praças e aos gestos de solidão e desamparo.

O navio avança no mar sucessivo. As espumas flutuam. O que há de mais mutável na superfície das águas ostenta a fortuna de uma permanência. Ao acompanhar o fazer-se e desfazer-se das espumas flutuantes, acode a Castro Alves a reflexão de que nem tudo o que passa passa. O que passa também permanece. O céu guarda o relâmpago. O céu guarda o voo do pássaro.

“– Uma esteira de espuma… – flores perdidas na indiferença do oceano. – Um punhado de versos… – espumas flutuantes no dorso fero da vida!…” Nessa reflexão do seu livro de estreia, há uma nota de amargura que contrasta com tantas palavras juncadas de esperança e confiança. O poeta tem apenas 22 anos. A tuberculose e o acidente de caça que o levou a amputar o pé lhe marcam o corpo combalido. Mas é em seu espírito que se levanta a onda maior de tristeza e desconsolação. E, na esteira de espuma, ele assiste ao fluir de sua vida: a infância no lar instruído; a educação rigorosa no Colégio Abílio; os primeiros recitais, que prenunciaram o seu gênio poético; a amizade polêmica com Tobias Barreto; a descoberta seminal do Romantismo e a leitura de Victor Hugo e Musset, Byron e Lamartine, Chateaubriand e Espronceda; o suicídio de seu irmão José Antônio; a passagem tumultuosa pela Faculdade de Direito do Recife; a campanha abolicionista, ao lado de Rui Barbosa; o seu amor por Eugênia Câmara e a consagração no Teatro Santa Isabel; as representações do seu drama Gonzaga; as visitas a Machado de Assis e José de Alencar, no Rio de Janeiro; a ida a São Paulo, com o fim de prosseguir nos estudos jurídicos.

As ondas desdobradas lhe devolvem a sua própria voz ardente, que recitou a “Ode ao Dois de Julho”, “Pedro Ivo” e “O navio negreiro” – essa voz única e insubstituível, em que, interpretando o sentimento da nacionalidade e identificando-se para sempre como o poeta da Abolição da Escravatura e do sonho da República, ele se traslada da história da poesia e da cultura para habitar o imaginário popular e panteão mítico e cívico. Mas agora, nesse instante de viagem, só a solidão o rodeia, como se no navio que vai devolvê-lo à sua Bahia só ele existisse, e ele estivesse viajando num brigue fantasma, sem tripulantes e sem passageiros, e cumulado apenas pelo seu eu excessivo e transbordante; pelo seu eu romântico por excelência, nutrido por uma escola poética que foi, antes de tudo, uma nova visão do mundo, uma redescoberta do homem e de sua escondida personalidade.

O Romantismo é uma escola de pressentimentos e antecipações. Os seus poetas sabem quais são os pseudônimos da morte. Minado pela tuberculose e cercado pelo exemplo e destino dos seus companheiros que, em existências breves e gloriosas, parecem saltar dos berços para os túmulos – como Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, Casimiro de Abreu e Laurindo Rabelo –, Castro Alves lê nas espumas flutuantes a dupla lição da efemeridade da vida pessoal e da permanência da arte poética.

Nesse cair da tarde de novembro de 1869, Castro Alves, “encostado à borda do navio”, contempla “o vasto incêndio do crepúsculo”. Mas, ao celebrar o espetáculo da noite que desce, o poeta nos transmite o sentimento de um amanhecer.

Peço vênia aos austeros e vigilantes membros desta gloriosa Academia, que tão galhardamente cultivam os valores do purismo vernacular, para que me permitam encastoar nesta minha canhestra evocação de Castro Alves uma palavra que ainda não mereceu asilo no nosso Vocabulário ortográfico da língua portuguesa.

Matinalidade é a palavra que, ausente dos dicionários, me ocorre para caracterizar o Castro Alves de ontem, de hoje e de sempre. O tempo não logra corromper o frescor de sua poesia: o seu persistente cheiro de jasmim; o seu inarredável cheiro de maresia.

A sua poesia, lírica ou épica, quer seja a voz coletiva de um povo em seu amanhecimento político e social, quer seja a voz pessoal do amante suspiroso, tem sempre um ar matinal. E esse ar da manhã ocorre mesmo quando ele celebra os nossos céus estrelados e faz deles, por uma radiosa imposição cosmológica, os céus do mundo e do tempo. E a aurora se esconde nos lençóis que cobrem os corpos cálidos e desnudos de suas amantes.

Neste umbral de um novo milênio, Castro Alves nos ensina que a nossa criação poética é um longo amanhecer. 

[Do livro O Ajudante de Mentiroso | © Lêdo Ivo, 2009 | Publicado pela Educam, Editora Universitária Candido Mendes | Reproduzido com autorização do Autor.]

 

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3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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