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				Armando 
				Silva Carvalho: Perfil de 
				sombras repentinas 
				
				  
				
				
				Floriano Martins 
				
				  
				
				Lemos 
				em um poema de Armando Silva Carvalho: “Honra os destroços. 
				Cobre-te com eles.” A máxima com que finaliza este poema de
				
				Sentimento dum acidental 
				(1981) 
				cabe aqui como epígrafe a estas minhas breves anotações sobre 
				sua poesia. É possível evocar sua ironia implacável, certo 
				sarcasmo com que advoga em favor da realidade quando esta se 
				sente apenas idealizada pelo poeta. Este é um bom tema para se 
				iniciar a leitura deste poeta, sem desconsiderar que o enunciado 
				não se sustenta sem a precisão da linguagem. 
				
				Armando 
				Silva Carvalho (Portugal, 1938) compôs já um conjunto de obra – 
				refiro-me aqui à poesia, sendo ele também narrador e tradutor – 
				em que a idealização de um discurso ou um mero malabarismo 
				sintático não podem ser aceitos como atributos, isolados, que 
				justifiquem uma poética. Lida com ambos os aspectos – seja ao 
				acidentar a linguagem com um léxico desconcertante, 
				surpreendente por seus deslocamentos conceituais de praxe, seja 
				pela veemência de seus comentários –, porém o faz em um sentido 
				alquímico, de mesclar tais recursos para que atendam somente 
				quando misturados. 
				
				Advém daí 
				alguns riscos naturais, que se pode observar apontados em 
				críticas a alguns de seus livros. Quando da publicação de 
				Sol a 
				sol 
				(2005), 
				por exemplo, Pedro Mexia fala em um “biografismo 
				desenfreado”,[1] o que pode ser confundido com o derrame 
				confessional que por vezes inúmeras afasta o leitor do poema. A 
				rigor, trata-se de um biografismo de sua presença e não ausência 
				no mundo, o poeta marcado e acumulado pela experiência pessoal 
				na medida em que esta o define como ser humano. E o faz com 
				tanto esmero e ciência dos riscos a ponto de ironizar a si 
				mesmo, assumir a voz de outros personagens, dentro do espírito 
				de uma modulação paródica tão bem percebida por outro crítico, 
				Manuel de Freitas. 
				
				Este 
				crítico, em comentário a 
				Lisboas
				
				(2000), 
				salienta a “vocação satírica” de Armando Silva Carvalho, mas 
				atenta, sobretudo, para o “modo extremamente despojado como 
				nesse livro a melancolia se sobrepunha a qualquer escape 
				humorístico”. [2] Ao destacar o burlesco, o poeta pode detectar 
				um ideário de desastres cotidianos, equívocos domésticos, 
				infecções da linguagem etc. Escapa inclusive, astuciosamente, da 
				presença de outro risco, o de ver-se confundido com um 
				tradicional discurso de lamentos. 
				
				Outro 
				aspecto a ser mencionado diz respeito à forma com que o poeta 
				anota seus temas, o recurso narrativo injetado nas veias do 
				lírico, a imaginação fundindo-se com o conhecimento e sua 
				saturação cotidiana. Acerta inteiramente António Carlos Cortez 
				ao dizer, em resenha a 
				Sol a sol, 
				que se trata de uma “poesia que se não esquece das 
				potencialidades da prosa”. [3] A imagem poética aqui se encontra 
				mesclada não propriamente com o confessionário cronológico, a 
				pauta lacrimejante de um diário, mas antes como uma percepção do 
				valor intrínseco das contradições que regem nossa existência. Ao 
				escrever sobre este mesmo livro, Eduardo Prado Coelho frisou 
				outro aspecto curioso, de que Armando Silva Carvalho freqüenta a 
				máxima como um recurso atípico, “onde o lado figurativo 
				predomina sobre a mensagem moral”.  
				
				Temos 
				assim características listadas que dão pela presença de uma 
				grande poesia. Um último aspecto tópico a ser mencionado diz 
				respeito ao diálogo com a tradição lírica de seu país. As 
				identificações da parte da crítica aludem acertadamente a pares 
				próximos no tempo, que vão de Alexandre O’Neill (1924-1986) a 
				Luís Miguel Nava (1957-1995). São duas aproximações valiosas, em 
				que a memória do vivido se expressa de forma pungente. Os 
				aspectos todos aqui somados facilmente exageram a admiração que 
				possamos ter por um determinado poeta. É um dos riscos da 
				crítica de poesia, o de forjar uma realidade que não corresponde 
				à leitura do poema. A rigor, não importa o que se diga sobre um 
				poeta, se o leitor não se descobre afim do que diante de si se 
				revela à leitura de um poema. 
				
				Em uma 
				entrevista a Ana Marques Gastão, por ocasião da publicação de
				
				Sol a sol, 
				o poeta nos esclarece: 
				
				Quero 
				que fique bem definido que não embarco nada nessas teorias da 
				transubstanciação do texto com que alguma gente anda por aí a 
				incensar certas escritas de forma obstinada e religiosa. O texto 
				não faz nem refaz o mundo. Quando muito pode fazer surgir um 
				mundo de fulgor que, obviamente, nunca vai além do texto que o 
				segrega. A vida é a vida, a palavra é palavra. A fusão da vida 
				pela palavra é uma forma indireta de viver, e até pode ser que 
				seja a mais rica de sensações. Não é por meio do mais fascinante 
				tecido poético que o texto se faz mundo em totalidade 
				majestática e intemporal. E não saindo do texto, do meu, se os 
				seres desaparecem nele, é porque já começaram a desaparecer duma 
				forma de vida que não corresponde à minha noção de vida humana, 
				em termos amorosos ou éticos. Tudo é menos e tudo é mais daquilo 
				que é, escreveu Paul Celan. 
				[4] 
				
				Não há 
				mais dúvida e finalmente podemos montar um cenário único 
				contando com todos os parágrafos anotados. Há uma realidade que 
				nos define. Pode ser sonhada ou pervertida, forjada ou 
				apequenada. O poeta não pode se entreter com seus mecanismos de 
				manipulação. Deve compreendê-los e desativá-los. Tais mecanismos 
				não isolam realidade e ficção, muito pelo contrário, se aplicam 
				a fundi-las na busca de gerar maior tensão. As particularidades 
				até aqui aplicadas à poesia de Armando Silva Carvalho confirmam 
				a existência admirável de uma voz poética acentuadamente 
				crítica, que responde às necessidades de uma poesia que não seja 
				isoladamente espelho ou crítica do mundo à sua volta. Nisto está 
				de todo certo Eduardo Prado Coelho, ao dizer, desta poesia, que 
				“não é só o som, é também a voz do mundo”. [5] 
				
				Armando 
				Silva Carvalho publicou os seguintes livros de poesia: 
				Lírica 
				consumível 
				(1965),
				
				O comércio dos nervos 
				(1968),
				
				Os ovos d’oiro 
				(1969),
				
				Eu era desta areia 
				(1977),
				
				Armas brancas 
				(1977),
				
				Técnicas de engate 
				(1979),
				
				Sentimento dum acidental 
				(1981),
				
				O livro de Alexandre Bissexto 
				(1983),
				
				Canis Dei 
				(1995),
				
				Lisboas 
				(2000) e
				
				Sol a sol 
				(2005). 
				Além de nove outros títulos na prosa narrativa, é também 
				tradutor de Aimé Césaire, Andrei Voznessenski, Margerite Duras, 
				Samuel Beckett e Stéphane Mallarmé. A presente antologia recolhe 
				a íntegra de 
				Armas 
				brancas 
				e seleção 
				dos demais livros. Ao leitor brasileiro, a fortuna de poder 
				finalmente conhecer uma das vozes mais substantivas da lírica 
				portuguesa contemporânea. 
				
				  
				
				NOTAS 
				
				1. “Um 
				caminho ao lado do mundo”. 
				Diário de 
				Notícias. 
				Lisboa, 15/4/2005. 
				
				2. “A 
				beleza dos focos de infecção”. 
				Expresso. 
				Lisboa, 3/6/2000. 
				
				3. “Descida 
				aos infernos”. 
				
				Jornal de 
				Letras. 
				Lisboa, 28/3/2006. 
				
				4. “O texto 
				não faz nem refaz o mundo”. Entrevista concedida a Ana Marques 
				Gastão. 
				
				Agulha – 
				Revista de Cultura 
				# 46. São 
				Paulo/Fortaleza, julho de 2005.  |