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				Sobre a poesia de António José Forte 
				
				
				
				Nicolau Saião 
				
				
				Dizia 
				Ernesto Sampaio em “A única real tradição viva” que “É esta a 
				orla de um tempo onde todo o pensamento grande e rigoroso vai 
				dar ao Inferno”. Noutro continente, por seu turno, referia 
				Chesterton que “Todo o encadeamento de palavras leva ao êxtase, 
				todos podem levar ao país das fadas”. É pois entre florestas e 
				sombras inquietantes ou surpreendentes que se movem as vozes dos 
				Poetas, uma vez que a razia social, se acaso consente a 
				maravilha, muito mais desejaria essas vozes perenemente sob um 
				sol negro de amargura. Nestes tempos do fim como lhes 
				chamou André Coyné, a Poesia move-se com dificuldade e é 
				deslocando-se entre Sila e Caribdis que a nave poética busca 
				chegar a bom porto. 
				
				
				Náo tenhamos ilusões: o Poeta que o é e não simples abonador de 
				prestígios em verso para maior glória dos seus donos, tem sempre 
				pela frente a insídia das horas do quotidiano policiado – mesmo 
				sendo homem de paz – da intolerância social das aparelhagens 
				sediadas nos pólos onde a avidez, o interesse orientado, a 
				mesquinhez, a corrupção judicial e a fraude pública ditam as 
				suas leis. 
				
				
				Para os que persistem em opor aos desvigamentos sociais do 
				dia-a-dia uma palavra alta e clara, já Gilbert Proteau nos 
				esclareceu qual o destino mais provável: a corda, o punhal, o 
				garrote, as difamações geralmente impunes, o calabouço e, nos 
				casos mais suaves, a marginalização. Aos que acaso escapam, 
				resta em geral uma vida de dificuldades que, entre nós, se cifra 
				na “apagada e vil tristeza” dum mundo que não pode e não quer 
				consentir a liberdade luminosa de ser-se “profeta e aedo num 
				país onde só querem que haja lapuzes e vilões”, para citar 
				Manuel Carreira Viana. 
				
				
				A poesia de António José Forte, falecido em meados de 1989, 
				ilustra de maneira perfeita o trajecto de quem não cede e 
				persiste em procurar a casa encantada em cujo telhado crescem 
				floridas excrescências carnosas, o “palácio ideal” que 
				Cheval levou à prática e tantos outros tentam erguer ora aqui 
				ora ali, entre bosques pimordiais e estranhas muralhas de 
				granito. 
				
				
				Dede o seu pimeiro livro “Trinta noites de insónia de fogo nos 
				dentes numa girândola implacável” até aos poemas finais dados a 
				lume na Editorial Estampa, passando plo texto que tinha como 
				personagem nuclear Daniel Cohn-Bendit vindo a público na revista 
				“Grifo”, imediatamente retirada de circulação pela PIDE que 
				impediu a publicação de novos números, sente-se perpassar uma 
				grande inquietação temperada, todavia, pela ternura dos seus 
				melhores momentos. As imagens encadeiam-se de forma inusitada, 
				sempre muito próximas de um “real absoluto” que punha em 
				destaque o amor e o conhecimento do mundo onde as figuras 
				estendiam salutarmente de mão em mão os objectos comuns como um 
				cigarro ou uma chave.  
				
				
				 Lembro, das conversas havidas ao velejar os minutos ao fim da 
				tarde ou já na noite colectiva, o interesse que Forte tinha 
				pelos grandes mistérios da existência (pirâmides de 
				Tenochtitlan, as construções desenhadas na planície desértica de 
				Nazca…) e, em contraponto, os enigmas contidos na existência 
				quotidiana habitual, que lhe pareciam ultrapassar os outros em 
				fascínio e estranheza. Esse quotidiano onde ele “passasse a 
				fumar/ e o fumo fosse para se ler”. 
				
				
				A poesia de António José Forte foi-me dada pela primeira vez a 
				ler por Donato Faria, seu companheiro de emprego nas bibliotecas 
				itinerantes da Gulbenkian, numa das nossas habituais reuniões 
				(já Forte saíra de Portalegre para ir trabalhar na Casa mãe) na 
				pensão da Rua 31 de Janeiro, frente à taberna Capote e cujas 
				janelas de terceiro andar deitavam para o Largo da Sé – sempre 
				repleto de gente, principalmente rapazes e raparigas alunos da 
				Escola do Magistério Primário, neses anos em que a cidade não 
				mergulhara ainda na desertificação que hoje a caracteriza em 
				geral e no casco histórico em particular.  
				
				
				Foi ali que este me mostrou os “Cadernos Pirâmide” da 
				responsabilidade de Carlos Loures e Máximo Lisboa. Era a segunda 
				vaga surrealista, que trazia nela autores como Manuel de Castro, 
				o magnífico poeta de “Estrela Rutilante” que teria como pares, 
				no desenho e na pintura, as explosões singulares de Mário Botas 
				e José Escada, posto que actuassem por outras bandas. 
				
				
				Mergulhando inelutavelmente no sonho de todas as horas, 
				interiores e exteriores, a poesia surrealista desses tempos, 
				seguidos logo de outros onde mais autores se forjavam, forçava 
				por libertar-se dos enleios do hábito, do conformismo imposto 
				por condottieri exteriores, geralmente literatos subidos 
				ao poder administrativamente e nele mantidos pelos mandantes 
				dentro e fora dos órgãos de comunicação e das estantes 
				desses lugares de massacre que demasiadas vezes são os 
				“estabelecimentos de ensino” de alto coturno. E em que o 
				lirismo, mais que ser apenas “um epigonismo da prisão de ventre” 
				como Cesariny dizia com justa ferocidade, seria luz revelada na 
				noite geral. 
				
				
				O lirismo de Forte, separado – por uma brusca mutação interior – 
				daquele que ainda hoje se expande em revoadas de folhas 
				propiciadas por tanto vate de ocasião (ou, o que ainda é pior, 
				por operadores de safada carreira cimentada por áulicos), 
				aspirava à realidade, essa realidade outra (surrealidade) 
				em que as mãos, por exemplo, já não são objectos para prender os 
				movimentos alheios mas sinal palpável de fraternal sabedoria 
				alcançada, pomo finalmente liberto abrindo fulgores diferentes e 
				mais autênticos. 
				
				
				Contra a quinquilharia que frequentemente fere o viajante, a sua 
				poesia é suscepível de criar em quem a lê um apetite de melhor e 
				menos banal. A ua adjectivação, que nunca bordeja as margens do 
				efémero ou do destrambelhadamente pseudo-original, que nunca 
				reside e se eixa cair na redundância pretensiosa mas é antes um 
				sublinhar de adequadas iluminações, faz passar de estrofe 
				para estrofe símbolos que extinguem a inutilidade das escritas 
				que acatitam a leitura.  
				
				
				Dizia Étienne de Sénancour: “O homem é perecível; pode ser…Mas 
				pereçamos resistindo e se, ao fim, o que nos espera é o vazio e 
				o nada façamos com que isso seja uma injustiça”. A poesia de 
				António José Forte, que permanece nos nossos ouvidos e na nossa 
				cabeça muito depois de ser lida, ilustra de forma soberana como 
				é possível lançar, aos deuses pogramados e progamadores, o 
				grande desafio dos que sabem ser e dar-se a si mesmos 
				como penhor de que não foi em vão a passagem dum Poeta pelas 
				planícies do tempo destroçado.   |