P R O J E T O   E D I T O R I A L   B A N D A   L U S Ó F O N A

 

 

J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

António Barahona | (1939)

António Barahona: Deus, pátria e família

 

Maria Estela Guedes

 

Olhai no descampado

a Virgem de olhos mansos.......................o Jesus chinês e eu.

Muhammad Rashid, O Progresso de Jesus (1975).

 

Quando conheci o António Barahona, era ele então bom muçulmano e reverenciador da Virgem Maria, mas já passara para além de Aos Pés do Mestre, buscando na Pátria o seu lugar sagrado. Foi assim que em 1980 saiu na Guimarães Editores um dos melhores livros de poesia do meu tempo, Pátria Minha, uma epopeia da nossa contemporaneidade. Anos mais tarde, na sua já muito preenchida carteira bibliográfica, a Imprensa Nacional/Casa da Moeda publicava-lhe o Livros da Índia, nascidos da sua paixão religiosa ou gramatical pelo sânscrito, que o levara a ir estudá-lo in loco, ao oriente. Além do Livros da Índia, desse longo périplo resultou também uma tradução da Bhagavad-Guitá, O Livro do Senhor, publicado pela editora Relógio de Água, em 1996. Na realidade, a trilogia monárquica ou salazarista, “Deus, pátria, família”, que o poeta deseja ver restaurada em todo o seu esplendor, não cola verdadeiramente no rosto de António Barahona, nem sequer como uma das várias máscaras que tem posto nesta trágica representação que é a vida. O que lhe define o rumo nas paragens poéticas é a gramática, que também é ou era trina, com acento na sintaxe mais do que na fonética e na morfologia, não obstante António Barahona se deter amiúde na palavra e no som, sopro ou música dela, e burilar os seus poemas até cintilarem como cristal. Mas as palavras só por si são objectos de dicionário, que não marcam espíritos a não ser talvez por sistemático uso de meia dúzia delas, o que corresponderia às séries nas artes plásticas – onde o rumo falta, a repetição substitui-lhe a dinâmica, dando a ilusão do movimento.

Há outra trindade envolvida na criação que, essa sim, nos dá a medida da singularidade do poeta: a escolha de umas e não outras palavras, o matrimónio que celebra entre elas, e o enquadramento em que as dispõe. Esta é a operação sintáctica, aquela que faz com que as coisas aconteçam na linguagem. As palavras “Deus, pátria e família” passariam incógnitas pelos textos, fora desta ordem sintáctica, para o caso instituída, e não uma criação do poeta, e em qualquer outro enquadramento não causariam nenhum sobressalto. Para ferirem como diamante ou reflectirem a luz como cristais, é necessário que um bom gramático as retire do dicionário e oriente-as no mapa da nossa consciência, de outro modo não reagimos. E então sorrimos porque nos dão prazer, ou gememos porque nos deram um estalo na cara.

A António Barahona deve agora a Literatura Portuguesa mais duas belas obras, de cunho autobiográfico não factual, e sim espiritual, Lugares de Lume e O Corpo e o Sangue, nas quais declara ostensiva e exuberantemente a sua conversão ao Cristianismo. Em sendo necessário, que o não é, eu poderia chancelar, como poeta que também sou, não só a sua fé mas a sua fé furiosa. Porém, a fé é uma paixão e como nas paixões, todas elas religiosas, como muito bem diz o poeta, acho que nem valerá a pena dar orientação sintáctica à frase. Neste caso excepcional o que penso ficou melhor dito assim do que se a tivesse completado. Entranhada na sintaxe, temos a alma da obra. Por alma entenda-se o que a suporta em sentido, saltando a barreira da matéria e, por conseguinte, o próprio registo da escrita, que nestes dois últimos livros se encontra com a obra de Muhammad Rashid, Aos Pés do Mestre, e se afasta muito do de Pátria Minha. Porventura, a diferença decorre da posição assumida pelo poeta: nos volumes de memórias e em Aos Pés do Mestre, ele senta-se aos pés de quem o ensina, transmitindo-lhe de boca à orelha a tradição.

Este conhecimento é retransmitido pelo poeta em discurso de aprendiz, logo tocando a infância da linguagem, como acontece em geral com os poetas que em certo momento se vêem na situação de “Começar” (Almada) ou “Re-Começar” (Ernesto de Sousa). Presumindo que seja próprio de todos os que valorizam as palavras e fazem delas o seu destino pessoal, o desejo de assistir ao próprio acto da Criação, e para isso balbuciam, fazem-se crianças, tentam reviver um instante original nunca aliás vivido, excepto na sua pseudomimese. É então esta posição submissa de criança-muito-adulta a adoptada por António Barahona em obras de religião explícita, tanto mais que a religião ou exige ser submisso ou é um dispositivo controlador. Em Pátria Minha, o mestre é o próprio poeta, é ele quem toma as rédeas de um discurso oposto ao pseudoinfantil, muitíssimo culto e elaborado, de uma sintaxe não normativa, geradora de voz própria, estilo inconfundível. Não é possível confundir este mestre da poesia portuguesa com nenhum outro poeta, a originalidade ganha em Pátria Minha um valor muito alto, que o poeta ainda não ultrapassou em obras subsequentes.

Nas que temos sob os olhos, a singularidade vem de outros lados, da tendência para a polémica e para a provocação que se vem acentuando desde os Alicerces dos Telhados de Cristal, em que, salvo qualquer lapso de memória, e a memória está mesmo a falhar, António Barahona se colocou ao lado de quem queria cortar a cabeça a Salman Rushdie por causa dos Versos Satânicos.

É claro que a luta é desigual: em qualidade poética dificilmente algum contendor bateria Muhammad Rashid. Em poder de decisão política é evidente que António Barahona só nos confins do deserto da Arábia encontraria os seus aliados. Mas este incidente revela que a fé é de facto uma paixão furiosa. Nas obras explicitamente religiosas, o poeta perde voluntariamente a voz pessoal. Tudo se confunde, porque estamos na presença de um aprendiz simulado: a educação adquire-se por mimese. Mas muito mais longe vai o poeta ao plagiar, isto é, ao conferir categoria poética a um acto que noutro contexto seria criminoso. Não conheço outro artista que tenha ido tão longe nesse tópico do retorno ao infans, o que ainda não sabe falar. Neste momento já temos a noção de que Muhammad Rashid não é um poeta e sim vários, como Pessoa, esse Fernando Pessoa que contribuiu para dar título a Pátria Minha de António Barahona: a voz e a personalidade mudam consoante as instâncias da sua errância. Nos extremos, mantendo a sua soberania como artista, ora temos um mago ora um amante. O mago é dominador, o amante um dominado.

Ora, que pátria é a de Pessoa? “[Sua] Pátria é a língua portuguesa”, todos sabemos, aqui, no Brasil, e nas outras ex-colónias. Pátria é a comunidade que está em condições perfeitas para comungar a palavra. Porque é a linguagem o que temos de mais íntimo e comum, aquilo sobre que assentam as leis por que nos regemos, as orações que rezamos, o amor que nos votamos e o pensamento que exercitamos, e sem essa pátria comum seríamos bárbaros, áfonos, surdos e animais.

O António Barahona não é um cristão, como não foi um muçulmano, se entendermos que o crente é um instalado, um acomodado, um alguém que já chegou ao seu destino ou já lá estava antes de ter empreendido a viagem. O poeta é uma ave de arribação, um peregrino perpétuo, uma alma em questa de Deus. António Barahona escreve como um profeta, e será preciso dar-lhe atenção, pois desde sempre foi em meio à loucura que irrompeu a Palavra mais constitutiva das culturas. O facto de lhe negarmos razão não significa que ele labore nas trevas, significa que ele está no outro lado da nossa rasa “racionalidadezinha”.

Fé não lhe falta e é sincera, mas a fé é uma agitação interior, um tender para e não um stop, como José Augusto Mourão já deixou expresso nas Alquimias. António Barahona ama tanto a Cristo como Muhammad Rashid amou a Allah, dois nomes para o mesmo Desconhecido. É para O encontrar que se senta aos pés de um padre ou de um imã-tala e continuará, porventura, a sentar-se diante de outros mestres, de outras religiões, enquanto viver. O que para trás fica, quando se ergue, não é Deus, sim a religião. O que à frente avança, quando a religião se desmorona, é a Poesia, lugar de assombro em que também é possível procurar Deus, e até encontrá-Lo. É aqui a Pátria, é Deus aqui, aqui a Família Gramática.

 

 

António Barahona, senhor poeta

 

Senhor poeta

vamos dançar,

caem cometas

no alto-mar

António Barahona

 

Pássaro-Lyra (Ichtus, Lisboa, 2002) é o segundo volume da Obra Poética de António Barahona. Estas antologias são importantes, não só por darem meios para uma visão global da obra, como por reactualizarem textos. Alguns deles marcam a cultura portuguesa, como é o caso do livro Eunice, que data da época em que Barahona estava casado com a actriz Eunice Muñoz, anos setenta. Se o divórcio ocorreu entre eles, já no enlace vida-obra não pode haver divórcio, sob pena de desagregação de uma unidade poética inscrita num complexo contexto de História.

Infelizmente, se Portugal reconhece o valor de Eunice Muñoz, já o mesmo não aconteceu (ainda) com António Barahona, cuja obra vem passando mais ou menos incógnita de geração em geração, apesar de alguns livros publicados em editoras poderosas, e estou a pensar na Imprensa Nacional/Casa da Moeda. O poder estatal devia consistir em integrar oficialmente os seus autores no núcleo dos mais representativos da Literatura Portuguesa. Porém, esse poder parece não ter tido qualquer repercussão nacional, de uma parte porque António Barahona não permaneceu na Imprensa Nacional/Casa da Moeda, continuando a dar-se à estampa em edições de autor, como o demonstram estes dois primeiros volumes da sua Obra Poética, de outra parte porque este Senhor Poeta não é socialmente integrável. Criadores com registo de vida pouco social, mais facilmente se integram no cofre dos valores nacionais depois de mortos, se bem que a regra tenha excepções, como Herberto Helder.

Em princípio, declarou-nos António Barahona, a partir de agora a Assírio & Alvim encarrega-se de lhe editar os livros. Antes tarde que jamais: com a chancela desta editora, que tem publicado autores portugueses como Herberto Helder, justamente, e Mário Cesariny, a obra de António Barahona ascenderá por fim ao lugar a que tem direito. E por que tardou tanto, e tarda ainda, o reconhecimento pelo valor da obra do autor de Pátria Minha? Provavelmente, porque a poesia se tornou formal e burguesa, a sua sacralidade tem vindo a ficar submersa ao longo dos tempos debaixo da tirania da imagem de marca: mais depressa se eleva a insignificância apoiada num currículo universitário e numa forma de vida modelada por uma carreira de sucesso – expressa em sinais exteriores de riqueza – do que no mérito intrínseco de obra oriunda de pessoa sem este perfil social. Cada vez há menos espaço para margens e António Barahona é um marginal. Já o termo “marginal” se sobrecarrega de tons negativos e associa-se mesmo à criminalidade. Ora, a marginalidade de António Barahona é de outra estirpe, indissociável da religião e da poética concebida como teologia, como ele mesmo diz, num poema deste volume que traz a rubrica de um testamento: “À despedida, com a letra mais escassa / [...] / De mim só ficará grande: grande alegria, / pássaros de papel, amores e teologia”.

Numa época em que o país era maioritariamente católico, e ateu na sua representação científica e cultural, António Barahona era muçulmano. Aliás o seu casamento com Eunice verificou-se segundo o rito islâmico. Hoje, quando a tendência do catolicismo é para a abertura e adaptação a novos problemas, quando no interior dele há aqueles que lutam pelo acesso das mulheres ao sacerdócio, e quando a elite intelectual recupera os valores religiosos – em expressões várias, e não apenas católicas –, António Barahona assume provocatoriamente uma posição fundamentalista cristã. Ele navegará sempre contra a corrente, e nós podemos recusar as suas ideias e projectos de vida, não podemos é persistir no silêncio quanto à sua poesia, da mais alta que nas últimas décadas tem aparecido em Portugal.

António Barahona escolheu o peixe (Icthus) para emblema das suas edições mais recentes, e de facto é também sob o signo da água que no “Pássaro-Lyra” vai levantando voo a n’ave poética. O que é o poeta, o que é a poesia? Sempre algo e alguém imaginado como participante de actividade ou elemento aquático: navegação, barca, “harpoador com restos de baleia ao redor da alma”, “degraus de rio” que é necessário passar. Note-se que o “harpoador” é também o pescador de música, tal como o pássaro-lyra não é apenas uma ave. Neste ambiente húmido, evocador tanto da Diva como dos Descobrimentos, um dos poemas mais significativos é o que analoga a natureza-poesia a um ritual. Essa natureza-poesia decorre da fusão dos elementos de uma paisagem marinha com recordações (verso final) de um dos mais conhecidos sonetos de Camilo Pessanha. Intitula-se “Missa”, deixando claro que o Senhor Poeta é um sacerdote, Nosso Senhor, e que, em António Barahona, a poesia é de facto um sacramento.

[Prefácio do livro Sobre um abismo, de Antonio Barahona. Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2007.]

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

     1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
    2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
     3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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