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				Antero de Quental ou a viagem através do deserto 
				
				
				
				Nicolau Saião 
				
				
				
				Há 
				seres que para mim, para o meu imaginário de sucessivamente 
				criança, adolescente e homem maduro, me apareceram e os vi 
				sempre como uma espécie de entidades caídas da cauda de um 
				cometa.  
				
				
				  Assim com Verne, Régio, Nicolas Flamel, Verhaeren, Camilo 
				Pessanha, Antero, assim com alguns outros de outras bandas, 
				serve dizer: Monet, Cimarosa, Jacob Epstein, Fritz Lang. 
				 
				
				
				Se os tenho como uma espécie de parábolas através da vida 
				breve, do tempus fugit, não distingo na perfeição o que 
				neles move o meu reconhecimento pelo que me deram, me foram 
				dando e me dão ainda nesta aventura peculiar que tem sido viver 
				com os outros e comigo mesmo, enquanto os anos rolam sob as 
				estrelas imutáveis. 
				
				
				  Apenas sei endereçar-lhes um halo de gratidão. 
				
				
				*** 
				
				
				
				“Concebi pela inteligência um molde e não atendi à matéria com 
				que tinha de o encher”, 
				disse Antero em Paris a Alberto Sampaio. E eis que assim e aqui 
				se vê entrar em cena o deserto com a sua presença inquietante de 
				madre negra e silenciosa, de olhos acesos no princípio e no fim 
				de Antero. Tentando ocultar a “matéria” que o Poeta se esforçava 
				por encontrar. 
				
				
				De facto, a busca de novos planetas empreendida por este claro 
				espírito tão exigente que de si mesmo dizia ser “um parto da 
				Terra monstruoso” e que até na destruição usava de rigor 
				(como no célebre episódio em que, com esmero algo arrepiante, 
				esquartejou centenas de laudas escritas nas suas melhores horas, 
				sob o olhar estupefacto de Eça) processou-se entre palácios e 
				altos jardins, mas por ora lhe estavam os gelos, os reduzidos 
				oásis, as estradas de pesadelo onde a cada passo um molosso 
				surge, não atento, ou absurdamente atento, ao caminhar sem 
				medida, de medida própria, do poeta e do homem. 
				
				
				 Antero foi homem e foi poeta e ao extremo das coisas levou essa 
				condição.  
				
				
				 Em Coimbra, onde fora a estudos, encabeça o movimento que cura 
				de antepor a Castilho, magister da razão velha, soldado 
				de outro fortim, novos ventos e novos sóis. E atrás de si leva, 
				e consigo, outros pesquisadores, posto que alguns o fossem de 
				mais limitados fôlego e trajectória. De Antero se haviam 
				animado. E passada a ponte e a árvore da “Questão Coimbrã”, 
				construída a nave que haveria de levar uma tripulação em demanda 
				de outras estrelas e portos, seguiu Antero o seu navegar com a 
				luz, o acre, o inteiro da vida e da morte por “erros 
				próprios”. É dessa rota que nos falam os seus poemas e o que 
				de mais fez. 
				
				
				 Da sua poesia deverá dizer-se que a anima o despertar de sons e 
				toadas distantes, não sendo uma poética de certificação mas de 
				sonho, de desejos e de esperanças (prováveis?improváveis?). 
				Música que Antero bem adivinhava e sabia e que iria no depois 
				forjar acontecimentos que pelo menos durante algum tempo 
				mudariam por completo a face do mundo. “E, pois somos loucos, 
				vamos / Atraz dos loucos mistérios…/ Deixemos ricas cidades/ Ao 
				sério dos homens sérios!”, escrevera ele para ser publicado 
				em 1864 nas “Primaveras românticas – Versos dos vinte anos”. E 
				nos “Sonetos Completos”, “Não me fales de glória: é outro o 
				altar/ onde queimo piedoso o meu incenso”, estes datados de 
				1862, colocara perto de si a verdadeira fogueira “de immoto 
				brilho, poderoso e terno” na qual é dado ao verdadeiro poeta 
				consumir-se: o amor do mundo, ainda que - se assim o decide o 
				destino - eventualmente plasmado num ser.  
				
				
				É que Antero era castor e tigre, mas se deixou as ricas 
				cidades não o fez com o fito de tornar à floresta: a 
				despeito de tudo, atingiu cidades mais belas e mais 
				operosas. 
				
				
				 Soletro: Nerval, Van Gogh, Vaché, Crevel. Comparo, medito. E 
				colho em José Régio estas palavras: “Vida de boémia 
				literária, de aspirações ardentes e vagas, de solicitações tão 
				diversas como logo suspensas, de caóticas leituras em que 
				simultaneamente figuravam a poesia romântica, a metafísica 
				alemã, a crítica francesa, o socialismo, o naturalismo ou os 
				grandes pessimistas – essa vida iniciada em Coimbra para sempre 
				lhe roubou a paz. Mestre amado dos seus companheiros, chefe pelo 
				vigor da inteligência, a superioridade do talento, o prestígio 
				da consciência clara e a própria sedução pessoal(…)”. Quem 
				se admira? Quem se admira pois que Antero – como outros, muitos 
				outros – se tivesse encontrado numa tarde plúmbea e derradeira 
				de Setembro com a sua outra imagem? É que com terrível 
				frequência o fim, para os que se atrevem a atravessar as areias 
				“de formas caprichosas e nunca vistas”, tem uma traça 
				muito semelhante. E querem melhor exemplo de atordoante “ironia 
				transcendente” do que aquela que Antero criou ao abater-se, 
				na última hora negra de uma vida restringida, num banco de 
				jardim público em frente do mar? 
				
				
				  “Metendo 
				pela Rua de S. Brás, encaminha-se a passos lentos para o Campo 
				de São Francisco, uma ampla praça pública de Ponta Delgada. Aí, 
				senta-se num banco, junto do muro do convento da Esperança. 
				Nesse muro, por cima do banco, um dístico em pedra lavrada 
				mostra a palavra esperança sobreposta a uma âncora. Antero 
				sorri. Esperança e uma âncora que o segurem à vida, eis 
				precisamente o que lhe falta”, 
				
				assim nos descreve Carlos Loures a última viagem de Antero. 
				
				
				A vida e a morte de Antero de Quental ilustram de forma suprema 
				o desencontro do muito que se tem com o pouco que 
				há, o desencontro do homem quase inocente (a despeito das 
				ciladas) em que todos andamos, há que séculos, mergulhados 
				até ao coração e onde as inquietações que valem não devem, pelo 
				interesse dos áulicos dos suseranos, ultrapassar o simples 
				dealbar do sol da manja (e, se eles são um pouco liberais, da 
				fornicação condicionada e reprodutiva) e do espaço de e para 
				restauro quanto baste. 
				
				
				 Antero, homem e poeta, libertário e socialista tanto quanto o 
				podia ser nesses anos, me parece a mim que tocou todos os 
				mundos, uns por fora e outros por dentro, da necessidade e da 
				liberdade. E tocou-os de maneira intensa, profunda.  
				
				
				 Tão profunda que como se viu, na sua casa de Ponta Delgada e 
				visando acertar velhas contas com uma existência que se 
				descompusera, aquele a quem Eça de Queiroz chamara Santo Antero 
				pôs termo a uma rota chegada a 1891 metendo uma bala nos miolos. 
				
				
				 “Não há já luz que dure,/ E não se pode crer /Na chama das 
				estrellas/ Que estão sempre a tremer”, escrevera ele um dia. 
				
				
				  A estrela de Antero, essa, haverá de estar sempre alta e fixa, 
				ardente. Livre e renovadora. 
				
				
				 E creio que estará sobre o deserto. 
				
				
				  
				
				
				DORME MEU FILHO 
				
				
				
				a Antero de Quental 
				
				
				Dizer: eis a tristeza. Dizer: a voz marinha 
				
				
				Dizer: soluçoou pedraou crimeou diamante 
				
				
				Aranha talvez não, que o sol morto dos mortos 
				
				
				Escondeu toda a Terra, deslumbrado e medroso 
				
				
				  
				
				
				Os barcos esperam docemente na manhã 
				
				
				Cobertos de hortências e de cravos 
				
				
				O canto intacto das sementes e das mãos. 
				
				
				  
				
				
				Dizer: o escuro do mar e a inclinação 
				
				
				Do mar sobrevoando o universo. 
				
				
				  
				
				
				Uma escada é um sepulcro ou uma ave branca 
				
				
				Apenas dependente do planeta originário. 
				
				
				  
				
				
				E os rostos aguardam desesperadamente 
				
				
				O silêncio das praias frias e abandonadas 
				
				
				  
				
				
				Nítidos, com a lua por adeus 
				
				
				Vão saindo da carícia e da lenda.  |