P R O J E T O   E D I T O R I A L   B A N D A   L U S Ó F O N A

 

 

J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

BANDA LUSÓFONA | BRASIL

Aíla Sampaio | (1965)

CURRÍCULO

Aíla Sampaio é cearense, nascida na região do Cariri. É graduada em Letras, tem especialização em Língua portuguesa e mestrado em Literatura. Publicou dois livros de poemas: Desesperadamente nua (1987) e Amálgama (1991), e o ensaio Os fantásticos mistérios de Lygia (2009). Exerce o magistério desde 1995 e, atualmente, é professora da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, onde é Assessora Pedagógica do centro de Ciências Humanas e editora da Revista de Humanidades. Escreve poemas, contos, crônicas e, sobretudo, resenhas e ensaios sobre o texto literário, que vem publicando esparsamente em jornais e revistas do país. Para conferir sua produção literária e acadêmica: www.literaila.blogspot.com | www.litebrasil.blogspot.com | www.litecearense.blogspot.com.

EM DEFESA DA POESIA

A poesia como alimento estético-espiritual

Aíla Sampaio

Poesia é uma forma de expressão literária que surgiu na antiguidade simultaneamente com a Música, a Dança e o Teatro. A partir de então, muitas foram as tentativas de defini-la, entendê-la, escrevê-la. Para Platão, a poesia, como a arte em geral, era uma ameaça epistemológica e ética à sociedade, pois ele via o artista como um fabricante de fantasias que desviavam as pessoas das verdadeiras ideias (a arte era mimese, pura e simples imitação do real). Além disso, a arte estimulava as paixões, os afetos e as emoções, que, descontroladas, podiam, conduzir à guerra e à catástrofe. Por conta desse risco, a arte só poderia ser praticada por crianças, loucos, mulheres e escravos, que não exerciam influência na esfera social. A boa convivência em sociedade dependia de certa a-phatia (ausência de emoções), por isso, em A República, ele diz que os artistas devem ser expulsos da cidade para que ela seja justa e feliz. A arte era falseamento e, assim sendo, não poderia influenciar os cidadãos comprometidos com a verdade.

Já Aristóteles (384 a.C.), seu discípulo, no livro Poética, procurou mostrar que a arte é verdadeira, sim. Ele reinterpreta a mimese ao afirmar que a arte não é só reprodução, mas reinvenção do real. Afirma que a poesia (universal) é mais séria e filosófica do que a história (particular) e vê nela (como nas outras artes) a função catártica; atribui a ela um efeito purificador, benéfico. A harmonia da cidade não estava na a-phatia, mas na boa medida entre razão e afetividade. Além de um meio para transmissão do saber, a arte passou a ser vista como edificante e pedagógica.

Foi no séc. V a.C., que apareceu a designação do poeta como poietés. Até então Homero e seus companheiros eram designados como cantadores, aedos (aoidoí), isto é, aqueles que cantam os altos feitos dos homens e dos deuses.

 No decorrer do tempo, as experiências estéticas com a poesia foram muitas. No Trovadorismo, entre os séculos XII e XIV, a poesia era ligada à música e recebia a denominação de Cantiga (Cantiga de amor, a que tinha como eu-lírico o homem; Cantiga de amigo, a que tinha como eu-lírico a mulher; mais as Cantigas de escárnio e maldizer). No Humanismo, além de ressuscitarem-se as canções de gesta francesas para inspiração das novelas de cavalaria, praticou-se a poesia palaciana, feita para ser recitada nas festas, uma poesia de louvor. O Classicismo, no séc. XV, trouxe a magnitude de Camões com sua epopeia Os Lusíadas e os sonetos de amor moldados na fôrma clássica.

Até aí não se fala na poesia brasileira, porque fomos oficialmente encontrados apenas no século XVI. Foi no período da colonização que a poesia chegou ao Brasil, com finalidade pedagógica e de catequização. No Barroco, ela foi a expansão da verve ácida de Gregório de Matos, que se vingava de quem o atingia por meio dos seus versos. No Arcadismo, ela cantou a vida simples e, no Romantismo, idealizou a mulher e o amor, despida de compromissos estéticos, tão somente comprometida com a inspiração do poeta para cantar o amor ou clamar pela libertação dos escravos. Os parnasianos contestaram o uso da poesia para qualquer finalidade e passaram a cultuar apenas a forma; a arte não deveria ter função, deveria existir puramente, sem contaminar-se com os apelos da subjetividade humana. A ‘arte pela arte’ era o princípio da criação artística. Muitos simbolistas reagiram a essas ‘algemas’, no final do século XIX, e buscaram novas soluções formais, sobretudo na França, mas, no Brasil, tal experiência não ultrapassou o alcance de uma linguagem fluida, vaga, em busca de evasão pela espiritualidade.

No século XX, a poesia perdeu toda essa pompa… o verso livre dos modernistas e a inserção do cotidiano como tema poético abriram espaço para que o poeta se movimentasse em liberdade entre as palavras. E foram muitas as experiências com essa liberdade: os concretistas aboliram o verso, o poema-processo mostrou a desnecessidade da palavra, o neoconcretismo cobrou engajamento nas questões sociais, o Tropicalismo reacendeu o diálogo entre a poesia e a música, os poetas marginais expressaram sua irreverência,… e hoje? O que restou disso tudo? Que função a poesia tem?

A poesia permanece como uma forma de criar outro mundo “mais bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais ordenado – por cima da realidade imediata”, com diz Gullar. Ela é a possibilidade de expressar, através da palavra, esse mundo objetivo que nos cerca ou o mundo de subjetividades que nos enreda. É como a luz que falta para que enxerguemos. Quem faz poesia tem a capacidade de transfigurar o real, recriá-lo… Quem lê poesia fica mais leve para aguentar o peso da existência. Isso, porque ela é, naturalmente, algo que se diferencia do ordinário, do comum, do mediano. Ela reconfigura as mentes ao lançar sobre elas novos olhares, ao mostrar o que não se vê a ‘olho nu’, ao fixar sentimentos e pessoas que o tempo carrega. Como fala Cohen, a poesia força a alma a sentir aquilo que geralmente ela se limita a pensar. Se lembrarmos de ‘O cão sem plumas’, de João Cabral, veremos como ele, por meio dessa metáfora, chama o leitor à reflexão sobre o fato de que o rio será aquilo que o homem fizer dele, como a ave que conquista o seu vôo, e sobre a sociedade, que transforma o rio num não-rio, o mar num não-mar, o mangue num não-mangue e o homem num não-homem:

Como o rio

aqueles homens

são como cães sem plumas

(um cão sem plumas

é mais

que um cão saqueado;

é mais

que um cão assassinado.

Na paisagem do rio

difícil é saber

onde começa o rio;

onde a lama

começa do rio;

onde a terra

começa da lama;

onde o homem,

onde a pele

começa da lama;

onde começa o homem

naquele homem.

São esses olhares que nos dão conta de que o poeta tem o poder da reconfiguração. Eles veem o que subjaz, o que não emerge à flor dos olhos da maioria. Para trazer um exemplo mais próximo, lembremos da canção ‘Flora’, de Ednardo, e sua exploração das potencialidades da linguagem:

No roçado do meu coração

Há um tempo de plantar saudade

Há um tempo de colher lembrança

Pra depois com o tempo chorar

 

Ô Flora, meu sertão florindo

Aflora o meu peito só

Teu amor é um fogo, é um fogo

É um fogo, é um fogo

Dos teus olhos tição

Observemos como o substantivo próprio Flora é utilizado expressivamente; Flora, a mulher; Flora, verbo no imperativo, um clamor ao sertão que o eu-poético quer ver florido, verdejante, como seu coração diante da mulher amada.

Distinta de sua teorização literária, a poesia pode ser apenas um alimento para a alma. Ela não precisa ser entendida em sua forma, dispensa conhecimentos prévios de métrica ou rima, de melodia ou de escansões. Ela precisa essencialmente ser sentida. É essa possibilidade de criação do que não existe, e da recriação do que existe mas falta, que faz do poeta um ser especial, como nos mostra Murilo Mendes, ao dizer que na poesia

Tenho constelações para me servirem

E gaivotas que levam minhas cartas

Mais depressa do que aviões

Nascem musas de minuto em minuto

Escovam o outro mundo para mim.

Não importa que os chamem de lunáticos, que os acusem de sonhadores… os poetas têm um universo muito particular. Realmente, nessa sociedade neoliberal e individualista em que se vive, os que amam e se dedicam à poesia têm que construir um universo à parte e preservar o sonho libertário da construção de um espaço anárquico… São os anjos gauches de Drummond. De que outro modo podemos não perder a delicadeza? Esse espaço anárquico de que falo está dentro de nós e é o que nos capacita à criação de um universo encantatório que nos salve do tédio. É a poesia esse antídoto. Sem ela, onde celebraremos nossos amores? Eles perecerão ou quedarão entristecidos como um violão com a corda quebrada, abandonado por quem quis, mas não aprendeu a tocar. Sem a poesia, o que faremos com a nossa saudade e com a nossa esperança de dias melhores? Com os nossos amores que não deram certo? Onde colocaremos nossas lágrimas e nossos risos? Poetas são, sim, lunáticos… bendita seja essa nave que os conduz a esse mundo onde ainda se pode celebrar a vida e seus sabores acres ou doces. Quem não se rende à poesia, quem não se deixa seduzir pelos seus olhares, sentirá o mundo e até a si mesmo dentro dos secos limites das objetividades. Não se comoverá diante de um pôr do sol e só enxergará pedra nas pedras, nunca será capaz de transformar lágrimas em oceanos ou dores em saudades gostosas de sentir. É Cecília Meireles quem diz: “a vida, a vida, a vida só é possível reinventada”… e sem a poesia, amigos, fica difícil reinventar o que quer que seja…

POEMAS

DE OUTRO TEMPO

 

Há em mim uma casa desabitada
perdida no abandono dos ventos
que sopram sem direção

há portas que batem silenciosas
atrás de um adeus sem data,
lágrimas nas paredes retintas
e trancas enferrujadas nos portais

há hera entranhada nas vigas,
nos muros e em minha alma,
fechando porteiras,
lacrando janelas
misturando-se ao musgo
que no jardim cresceu

Há em mim um silêncio quase sagrado
e a memória de um tempo que não é o meu.

 

AUSÊNCIAS


O que me habita é feito de ausências:

a casa perdida nos abismos da memória,

o amor feito lembranças do que poderia ter sido,

a criança que insiste em rasgar

o tecido do tempo em que borda sua história.

 

O que tenho são metades, nunca inteiros.

Sou feita assim, dessa argamassa vil dos crédulos

que sonham sem medo dos interditos e dos desesperos.

 

SEPARAÇÃO


Deixo teu corpo
como quem deixa a pele
e em carne viva
se expõe ao sol.

Como o filho que deixa a casa,
deixo teu corpo em silêncio
sem itinerário e só.

Deixo teu corpo
como quem abandona
o cais e perde-se
mar adentro
sem medo de não voltar.

Como quem naufraga,
deixo teu corpo
e minha alma nele
nua a dardejar.

Como quem se mutila,
deixo teu corpo
como quem deixa a vida.

 

CENA

 

Leves os teus dedos pela minha pele,
entre os pelos, entre os planos desfeitos e refeitos,
arrancando-me gemidos, certezas, dádivas, dúvidas.
Traço linha a linha o horizonte do teu corpo
como em tela pintando barcos,
como em argila esculpindo música;
em tuas calmas águas, em teus sedentos beijos
abrindo subterrâneos acordes
sob o branco dos lençóis.

É assim minha astúcia com as tintas
com que te pinto, com o barro com que te visto:
acordo cores em teu regaço,
desenho fontes onde escorre mágoas.
Depois de feita a arte-final,
por medo ou desilusão, talvez,
esqueço a cena
e te contemplo apenas de longe
como uma tela que não pintei...

 

PESADELO

 

Faz frio, muito frio

quando fico triste.

Tenho até febre

durante a noite que antecede

o desvario completo.

Faz frio e fica escuro o quarto vazio,

com o resto do teu cheiro de mar e ventania

fechando a minha boca

para eu não gritar.

 

 

Num impulso, tu agarras os meus cabelos

e me lanças a um fundo abismo
sem se importar com os meus gritos, o meu medo;

já descendo, a roupa ao vento,

eu acordo muda e com frio,
vejo a realidade, seu ar sombrio,

e peço, por tudo, que volte o pesadelo.

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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Janeiro de 2010 | Fortaleza, Ceará - Brasil
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Projetos associados: Revista La Otra (México) | Ediciones Andrómeda (Costa Rica) | Revista Blanco Móvil (México) | Edições Nephelibata (Brasil).
Cumplicidade expressa: Alfonso Peña, Camilo Prado, Eduardo Mosches, Gladys Mendía, José Ángel Leyva, Soares Feitosa e Socorro Nunes.
Contatos:
Floriano Martins bandahispanica@gmail.com | floriano.agulha@gmail.com.
Soares Feitosa: soaresfeitosa@secrel.com.br | soaresfeitosa@uol.com.br.
Agradecemos a todos pela presença diversa e ampla difusão.