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J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

BANDA LUSÓFONA | BRASIL

Adriano Espínola | (1952)

O livre trânsito poético de Adriano Espínola

Floriano Martins

 

1.

A verdadeira poesia faz com que ocorram coisas. Como nos lembra o inglês Robert Graves, “o poema quando alcança um grau intenso, funciona na quinta dimensão sem tomar em conta o tempo”. Verifica-se uma sagração dos elementos que são tocados pela poesia. Um valor acima de toda a relatividade do mundo. Uma verdadeira aliança com o absoluto. Ouçamos Gottfried Benn: “As palavras pulsam algo mais que notícia ou conteúdo; por um lado são espírito, mas por outro possuem a substancialidade e a ambigüidade das coisas da natureza”. Melhor do que ninguém o poeta alemão solucionou as questões geradas pela eterna dissidência entre forma e conteúdo, em sua fundamental conferência “Problemas da lírica” (1951), e a conclui exatamente recordando uma aclaradora frase de Hegel: “Não a vida que tem medo da morte e se mantém pura da devastação, mas sim aquela que a suporta e nela sabe conservar-se, essa é a vida do espírito”.

De alguma maneira sou tocado por essas lembranças quando me ponho a escrever acerca da poesia de Adriano Espínola (1952), em especial sobre este recente Em trânsito (1996), livro que reúne seus dois últimos títulos publicados: Táxi ou poema do amor passageiro (1986) e Metrô ou viagem até a última estação possível (1993). Em grande parte isto se explica pelo aspecto de intensa relação que sua poesia mantém com essa “devastação” a que se refere Hegel, Georg Wilhelm Friedrich", ou seja, fundamenta-se sua poesia exatamente por não temer mesclar-se à matéria esfacelada de seu tempo e dali, ao escutar o pleno avanço da devastação, recompor-se já em condições de não “tomar em conta o tempo”. E abraça a intemporalidade justamente a partir de seu emblema mais voraz: a viagem. Seu espírito constitui-se em forma de um frêmito absoluto que a tudo devora. Não é outro o sentido de seu trânsito: tocar os dois extremos: lugar e não-lugar. Não se trata simplesmente de uma oposição ao sedentarismo, mas sim de uma ousadia maior, de tocar a medula do movimento e não extraviar-se em sua revelação. Portanto, a voracidade urbana não é senão uma das mil tramas de que se utiliza a poética de Adriano Espínola para fazer com que ocorram coisas no desfiar de seus versos.

A respiração define a existencialidade de uma poética. Nenhum crítico atinge a última estação possível da poesia se não capta a respiração do poeta com quem decide conviver. Antes de vincular-se a uma mera fome do cotidiano, no sentido mesmo de uma dependência das batidas cardíacas de seu próprio tempo, penso que radica a respiração da poesia de Adriano Espínola em uma necessidade vital de penetrar a inquietude de seu espírito, busca de um enfrentamento com seus suores internos, com o furor de suas vertigens. Claro, tal périplo ulterior somente se realiza como linguagem, como rigor verbal. Neste sentido podem muito bem, à primeira lida, ser confundidos seus versos com uma reiteração de certos mecanismos desgastados das vanguardas experimentais, sobretudo pela grosseira recorrência desses mecanismos por grande fatia da poesia que se produz hoje no Brasil. No entanto, somente recorre a tais expedientes em função de uma acentuada ironia, a partir da qual senão exatamente os questiona, ao menos os expõe, ou melhor, os descarna sem piedade. Este é sem dúvida o grande risco que norteia sua poética: insurge-se contra o desgaste da linguagem a partir da utilização dos próprios atributos de sua degeneração. Seu risco e conquista. Se Em trânsito, sobretudo em seu segundo livro, Metrô ou viagem até a última estação possível, confunde-se com um mero inventário das degradações urbanas, sem opor-se diretamente a tal estado de coisas, define uma ordem estética do próprio poeta, interessado em minar a linguagem por dentro, empenhado em fazer com que sua lúcida ironia violente a linguagem a partir de si mesma, evidenciando seus desgastes, suas reiterações, sua respiração corrompida.

Motivado não pela vitalidade da analogia, mas sim por uma busca desarticulada de paralelismo inconseqüente entre poéticas, já se escreveu acerca das relações possíveis entre Adriano Espínola e Álvaro de Campos. Talvez possa nos interessar tal analogia à luz de uma leitura de Octavio Paz, ao situar que Pessoa, através de Álvaro de Campos, lançava-se “a ser todos e estar em todas as partes”. Tal aparente estado de vadiagem do ser implica uma “consciência do desterro”, sendo esta uma “nota constante da poesia moderna”, como nos segue lembrando o poeta mexicano. Neste sentido, julgo superficial atribuir vínculos entre a poesia de Adriano Espínola e Álvaro de Campos, visto que seguimos ainda desfiando o entramelado de ecos da modernidade, seus inúmeros ardis e antefaces. Ao empreender a viagem de Espínola todos nos descobrimos outro em nós mesmos. A poesia nos dá essa consciência do outro. Dupla consciência: a necessidade de imprimir realidade em tudo quanto tocamos e a nostalgia de uma unidade perdida. Em tal sentido, a poesia de Adriano Espínola não encontra analogia entre seus pares, resolvendo melhor que qualquer outra essa busca vertiginosa de uma revelação de si mesma através do mergulho na precariedade corrosiva de seu próprio tempo.

Ao pensar inicialmente em Robert Graves e Gottfried Benn certamente fui tomado de indignação no tocante a certa defesa que se tem feito acerca da falência da lírica. Não penso na viagem realizada pela poesia de Adriano Espínola como uma negação da lírica, mas sim como sua transfiguração. Não determina-se a singularidade de uma voz com base em sua ansiedade, mas sim a partir de sua ousadia e a conseqüente tessitura de seu universo. Insisto que a urbanidade voraz da poesia de Espínola radica em sua visionária trilha a caminho de si mesmo, epos que rasga a realidade de sua própria busca de identidade, busca de um outro que garanta sua permanência, diálogo com a ambigüidade do ser, lugar demarcado por um sentido de implosão constante, antes de emblema superficial de um processo de degeneração deste mesmo ser, já em uma conotação arbitrária de puro estar, por que passamos hoje em nossa instância finissecular.

 

2.

Tange as cordas de sua potência lírica uma vez mais o poeta Adriano Espínola, desta vez com o lançamento de Beira-sol (1997). Dois outros momentos anteriores de sua poesia foram O lote clandestino (1982) - livro através do qual insurgia-se, com sua linguagem cosmopolita e uma notável ironia, contra o que já denominei de estética do cangaço - e Em trânsito (1996), livro em que se observa uma radical transfiguração da lírica moderna.

Tanto nos anteriores como neste Beira-sol, a poesia afirma-se como viagem. Também neste poemário, parodiando o próprio autor, tudo começa onde ele não está. Portanto, uma vez mais a tensão entre lugar e não-lugar. Em poema que deveria abrir o livro nos diz Adriano: “Sou outro / em mim, // memória / da cidade, // que se sonha / outra vez // na claridade”. E radica justamente no transbordamento da claridade o sentido desta poética ora enriquecida em Beira-sol.

Referi-me inicialmente a uma potência lírica e não há outra idéia que melhor defina o tratamento das imagens em Adriano Espínola, a julgar por versos como “meninos açoitam / com a espinha dos peixes / o dorso da claridade”, “arbustos se agarram / em desespero / à alva memória / da areia” ou mesmo a “tela de espuma e esquecimento” em que “o mar desfia a eternidade”. E diga-se aqui que a genealogia deste seu concentrado lirismo não se subordina a estatutos geracionais. Antes prolonga uma resistência lírica sempre presente em toda grande poesia.

Em sua viagem por uma Fortaleza revisitada, emprega Adriano Espínola um caudal de metáforas solares de refulgente impacto. A cidade idealizada pelo poeta remete ao açoite do sol sobre seu lombo. Embora estruturado em dois capítulos, “Claridade” e “O cão dos sentidos”, o primeiro com vinte e o seguinte com dezoito poemas, o livro poderia muito bem definir-se como um único e largo poema, não fosse pela presença de algumas passagens de clara discórdia com seu universo temático.

Logo no início alude à “língua-mar, viajando em todos nós”. Mais à frente encontramos: “em sua jornada, / todo homem busca um mar, um nome, nada”. No belíssimo soneto dedicado ao jangadeiro, conclui ser idêntica sua viagem à de Ulisses, “buscando, repentino, / a sua ilha, o seu rosto e o seu destino”. Nessa jornada por um mar interior do fortalezense idealizado por Adriano Espínola o sol (“pai de todo pensamento”) reina vigoroso com sua árvore ígnea. Todo um universo mítico - conquistadores, pescadores, lavadeiras, rendeiras, prostitutas - habita sob a copa do sol.

O livro revisita figuras históricas, a exemplo de Pinzón, Martim Soares Moreno, Matias Beck e Silva Paulet, ao mesmo tempo em que deita suas metáforas sobre coqueiros, praças, urubus, dunas, frutas etc. Traça, na verdade, um ideário fulgurante dessa cidade mítica habitada pela memória do poeta. Basicamente afeito ao verso branco, deixa-se iluminar também pela presença de alguns sonetos, curiosamente ao esticar, mais solene, sua teia sobre o mito. Fábula do sol, que a tudo invade com sua profunda claridade, seu incêndio transbordante.

A compacta estrutura temática de Beira-sol, no entanto, abre a guarda e permite o ingresso de quatro digressões: “Evocação de García Lorca, “Zoológico”, “João” e “Mucuripe, peixe e paixão”. Pode-se pensar numa defesa: o primeiro deles celebra o reconhecimento ao poeta de Romancero gitano; “João” também parte da mesma raiz: dedicado que é ao autor do mais importante estudo crítico da poesia de João Cabral, o ensaísta Antônio Carlos Secchin. Por sua vez, “Mucuripe, peixe e paixão” é um aquartelamento cordelista, que chega a soar retórico em um poeta tão marcado pela irreverência. Mesmo recorrendo a Ulisses nos costados dos versos finais, soa mais como uma pouco charmosa litania, disfarçada em seu galope martelado. Defesa menor comporta o zumbido zoomórfico com que o poeta ilustra “a planície do domingo” de sua aldeia mítica. Além do mais, estes dois últimos poemas são recheados de obviedades contrastantes com o surto brusco das grandes imagens que definem o resto do livro.

De qualquer maneira, a insurreição é francamente debelada, não interferindo radicalmente no “galope fogoso” da poética do autor. Diz de um pescador que “retalha com a peixeira / o esquivo / milagre dos peixes”. Em outras passagens refere-se à luz que “irriga de calor / a angústia dos homens” e ao bulício das pernas que “viajam / para o centro do dia”. Graças à concentração do fogo da memória tudo é irradiação na poesia de Adriano Espínola. Neste sentido, nenhum verso define melhor a transpiração pensativa de seu livro: “o sol me aponta / o carvão íntimo / das coisas”.

Beira-sol recebeu o prêmio de poesia de 1995 da Fundação Biblioteca Nacional/INL para obra em curso. Estampa em sua capa um dos raríssimos equívocos cometidos pelo magnífico artista gráfico que é Victor Burton. Não compreendeu que o sol de que trata a poesia de Adriano não paira sobre algo e sim que se encontra cravado firmemente no dorso de sua memória. Não se trata do fulgor futurista do Adriano Espínola de Em trânsito, mas sim de uma fulgurância revisitada. Talvez prenda-me a excessivos detalhes. Importa então concluir dizendo que este livro segue a definir o livre tráfego de um poeta por todas as aventuras estéticas da modernidade. Já não se trata de uma aparição e sim de uma afirmação.

 

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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