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				Um encontro com Manuel António 
				Pina 
				
				  
				
				Floriano 
				Martins 
				
				  
				
				FM 
				Em 1992, preparas tua primeira versão de uma poesia reunida, 
				sob o título: Algo parecido com isto da mesma substância. 
				Tem-se aí um indicativo da ironia que pontua tua poética. Em 
				2001, já em uma segunda versão, suprimes o título, dando ao 
				livro apenas o título: Poesia reunida. Considerando o 
				título de um livro de 1999: Nenhuma palavra e nenhuma 
				lembrança, percebe-se um acentuado reforço da ironia. A qual 
				substância te referes e de que maneira ela propicia a ti um 
				reencontro com a inocência original? 
				
				MAP 
				Tenho sempre muita dificuldade em falar sobre a minha poesia. E, 
				por maioria de razão, em responder sobre a substância (o que 
				quer que isso seja) dela. Provavelmente escrevo poesia para 
				procurar saber disso mesmo. O título Algo parecido com isto 
				da mesma substância chegou-me, se me lembro bem, de Nicolau 
				de Cusa. A minha ideia era a de que tudo aquilo, os poemas que 
				até então tinha escrito, e os que continuo a escrever, eram só 
				aproximações, tentativas de tocar algo irremediavelmente 
				distante, talvez de tão elementar e de tão perto, imagens de 
				qualquer coisa inominável tentando falar no meio de tanta 
				memória. Porque (escrevi-o uma vez num poema), é o infalável 
				que fala, ou tenta desesperadamente falar, na poesia; pelo menos 
				na minha. A “inocência original”, dizes tu. Sim. E o silêncio 
				original. Porque temos (eu tenho) a cabeça e o coração cheios de 
				vozes. Escrevemos decerto com a memória, mas também contra ela. 
				Em busca de uma improvável voz inicial. Mas como esquecer? E 
				como nos calaremos? Sem que palavras? Há, dir-me-ás, em tudo 
				isto uma grande e melancólica ansiedade da influência. Há sim, 
				até onde posso sabê-lo. Daí a ironia. Mas não passamos a vida (e 
				a literatura) à procura do nosso rosto, ou de algo parecido com 
				ele? No meu próximo livro, que deverá sair em Outubro, incluí 
				uma espécie de “arte poética” que talvez responda melhor do que 
				eu à tua questão: “(Arte poética) Vai, poema, procura / a 
				voz literal / que desoculta fala / sob tanta literatura. // Se a 
				escutares, porém, tapa os ouvidos, / porque pela primeira vez 
				estás sozinho. / Regressa então, se puderes, pelo caminho / das 
				interpretações e dos sentidos. // Mas não olhes para trás, não 
				olhes para trás, / ou jamais te perderás; / e teu canto, 
				insensato, será feito / só de 
				melancolia e de despeito. // E de discórdia. E todavia / sob 
				tanto passado insepulto / o que encontraste senão tumulto, / 
				senão de novo ressentimento e ironia?” 
				
				E ainda as 
				duas primeiras estrofes de outro poema do mesmo livro, 
				intitulado “Os mortos”: “(Os 
				mortoS)
				
				
				Eu sei, é preciso esquecer, / desenterrar os nossos mortos e 
				voltar a enterrá-los, / os nossos mortos anseiam por morrer / e 
				só a nossa dor pode matá-los. // Tanta memória! O frenesim / 
				escuro das suas palavras comendo-me a boca, / a minha voz 
				numerosa e rouca / de todos eles desprendendo-se de mim! / (…)” 
				
				Como vês, 
				muito do que escrevo tenta justamente responder a coisas como as 
				que perguntas… 
				
				  
				
				FM 
				René Daumal considerava o conhecimento como uma experiência 
				total do ser. De que maneira se tocam esses aparentemente dois 
				extremos que são a inocência e o conhecimento? O que isto teria 
				a ver com aquela idéia do Mauricio Blanchot que entrelaça 
				literatura e ilusão? 
				
				MAP
				
				
				Esses extremos tocam-se, diria Heidegger, como os cumes das 
				montanhas distantes, isto é, digo eu, no fundo da terra e do 
				ser. “Saber é esquecer/ e esta é a sabedoria/ e o esquecimento”, 
				escrevi eu uma vez. A literatura é a ilusão de que esquecer é 
				possível. Mas estamos condenados à memória, não é? Porque, se 
				calhar, é isso o que somos: memória.  
				
				
				  
				
				FM 
				Mas de que maneira, em tua poesia, lidas com a ideia de um mundo 
				possível? 
				
				MAP
				
				
				Permite-me que te responda, de novo, com um poema do meu próximo 
				livro (as tuas perguntas arriscam-se a esgotá-lo…): “Real, real, 
				porque me abandonaste? / E, no entanto, às vezes bem preciso / 
				de entregar nas tuas mãos o meu espírito / e que, por um 
				momento, baste // que seja feita a tua vontade / para tudo de 
				novo ter sentido, / não digo a vida, mas ao menos o vivido, / 
				nomes e coisas, livre arbítrio, causalidade. // Oh, juntar os 
				pedaços de todos os livros / e desimaginar o mundo, descriá-lo, 
				/ amarrando-me ao mastro mais altivo / do passado. Mas onde 
				encontrar um passado?” 
				
				
				  
				
				FM 
				Há uma edição de tua poesia prevista para este ano por uma 
				editora brasileira. Dois outros poetas portugueses estão fazendo 
				sua estréia no Brasil este ano: António Osório e Ana Marques 
				Gastão. Como a poesia brasileira é percebida em Portugal? 
				
				MAP
				
				
				Acho que foi Bernard Shaw (ou foi Oscar Wilde?) quem comentou 
				que a Inglaterra e a América vivem separadas por uma língua 
				comum. Com o Brasil e Portugal sucede o mesmo. Alguma da poesia 
				brasileira é relativamente conhecida em Portugal (pelo menos tão 
				bem como alguma da própria poesia portuguesa): Drummond, João 
				Cabral, Bandeira, Jorge de Lima, Murilo, os concretistas 
				(divulgados sobretudo pelos congéneres portugueses); Haroldo e 
				Augusto de Campos, principalmente pelas suas traduções de 
				poesia; ou Carlos Nejar, que nos anos 60 foi presença assídua em 
				Lisboa e no Porto. Alguma outra começa lentamente a sê-lo, mesmo 
				que só em círculos limitados: Ferreira Gullar, Adélia Prado, 
				Affonso Romano de Sant’Anna. Recentemente saíram livros de 
				Carlito Azevedo, de Eucanãa Ferraz, de Maria Ângela Alvim, e 
				julgo que está para sair um de Duda Machado. A revista 
				Inimigo Rumor, agora em edição luso-brasileira, começa a ser 
				um agente importante do conhecimento da poesia do Brasil em 
				Portugal (e espero que também da poesia portuguesa no Brasil). E 
				há ainda a Net (a Agulha é um bom exemplo). Mas os leitores de 
				poesia brasileira são, como os da portuguesa, sobretudo outros 
				poetas. Como escreveu Alexandre O’Neil: “Quem vos lê a vós? 
				Somos nós/ E quem nos lê a nós? Sois vós./ Tudo fica, pois,/ 
				entre nós, entre nós”. E quem, como eu, procura poesia do 
				Brasil, sempre a pode ir encontrando numa livraria especializada 
				em literatura brasileira e em importar livros do Brasil: a Nova 
				Fronteira. Mas a sensação que existe (falo por mim, mas a 
				situação há-de ser semelhante para a grande maioria dos leitores 
				portugueses de poesia) é que o Brasil, no que respeita à poesia, 
				continua a ser um imenso território ainda por descobrir. 
				
				
				  
				
				FM
				
				
				Dentro dessa perspectiva há ainda as dificuldades internas, em 
				cada país, de fazer circular a produção mais expressiva de sua 
				poesia. Aqui conseguimos identificar os nossos dilemas, 
				percebendo o quanto há de equívoco em alguma poesia brasileira 
				que se difunde em Portugal. Decerto o mesmo se passa com os 
				portugueses. Mas o que me dirias tu desses dilemas editoriais em 
				teu país? 
				
				MAP
				
				
				Com a edição de poesia em Portugal passa-se o que, em geral, se 
				passa na Europa ocidental: as maiores editoras e distribuidoras 
				fogem-lhe como o diabo da cruz. A não ser que a editora seja 
				suficientemente grande para poder dar-se ao luxo da poesia, como 
				a Gallimard em França. Ou, em Portugal, e à nossa medida, como a 
				Asa, a Caminho ou a Campo das Letras. Editar poesia entra então 
				nos custos da política de imagem, porque, mesmo quando não dá 
				danos emergentes, sempre implica os lucros cessantes da ficção. 
				Porque a poesia parece ter algum incompreensível prestígio, que 
				leva não só muita gente a escrever poesia como muita mais a ser 
				incapaz de confessar como a poesia a aborrece. Os políticos 
				usam-na na lapela e nos discursos e a citação de um verso dá 
				sempre uma espécie de nobreza “exquise” e a imagem de pertença a 
				um aristocrático grupo de eleitos. O grosso da edição de poesia, 
				a dos poetas mais novos e a dos que não estão no panteão, fica, 
				pois, ao cuidado de pequenas editoras. No meio surgem algumas 
				raras editoras de média dimensão “especializadas”, digamos 
				assim, em poesia. Em Portugal, o “caso” é, sem dúvida, a Assírio 
				& Alvim (ao lado, talvez, da Relógio d’Água): um catálogo de 
				grande qualidade, onde avultam nomes como os de Pessoa, Herberto 
				Hélder, Mário Cesariny, Alexandre O’Neil, Ruy Belo, Teixeira de 
				Pascoaes e outros, servido por uma identidade gráfica igualmente 
				notável, fazem da Assírio & Alvim o rosto da edição de poesia em 
				Portugal. De qualquer modo, as tiragens continuam a ser 
				pequenas, salvas algumas poucas excepções, como Pessoa, Herberto 
				ou Eugénio de Andrade. Os meus livros, por exemplo (e vendem 
				relativamente bem), andam entre os 1000 e os 2000 exemplares. 
				Por outro lado, a edição de poesia portuguesa no estrangeiro 
				vive de apoios específicos do IPLB, que subsidia a tradução 
				(assim aconteceu com as minhas traduções francesas e búlgaras) 
				ou de iniciativas individuais, como a edição da minha poesia no 
				Brasil, que devo à generosidade e à diligência de um poeta 
				brasileiro que um dia se interessou por ela, Carlito Azevedo.
				 
				
				
				  
				
				FM
				
				
				Tua geração vem logo a seguir aos turbulentos anos do 
				Surrealismo. Havia acaso um sentido de responsabilidade em ir 
				além do que haviam proposto poetas como Cesariny de Vasconcelos, 
				António Maria Lisboa, Herberto Helder e Cruzeiro Seixas, por 
				exemplo? E como convives com teus pares geracionais? 
				
				MAP
				
				
				Como disse antes, escreve-se sempre com e contra o passado, 
				principalmente contra o passado recente. Julgo, no entanto, que 
				a minha poesia sempre conviveu mais saudavelmente com o passado 
				recente surrealista (e com o modernista) do que a da 
				generalidade dos poetas da minha geração. A minha poesia nunca 
				teve vocação geracional; pelo contrário, procurou mais a 
				companhia dos mais velhos do que a dos poetas da minha idade. 
				Não me parece, por exemplo, que ela tenha alguma coisa que ver 
				com a de Joaquim Manuel Magalhães (cujo proselitismo, aliás, me 
				incomoda), a de João Miguel Fernandes Jorge ou a de António 
				Franco Alexandre, que têm também pouco que ver uns com os 
				outros. Ou com a dos poetas de 60, responsáveis imediatos da 
				ruptura com o surrealismo e o neo-realismo. 
				
				
				  
				
				FM
				
				
				Além de extensa obra poética, tens uma larga produção também no 
				que diz respeito à literatura infantil. Como trafegas entre 
				essas duas categorias? 
				
				MAP
				
				
				Uma coisa e outra, a poesia e a literatura por assim dizer 
				infantil, são, acho eu, nomes da mesma escrita, ou antes, da 
				mesma relação com a escrita. Muitas vezes principio um poema sem 
				me aperceber de que ele quer ser um poema “para” 
				crianças. Por isso meto entre aspas esse “para”. Porque não 
				escrevo “para”, escrevo apenas. Há decerto um leitor no 
				horizonte de toda a escrita, quanto mais não seja pelo simples 
				facto da língua. A língua, diz Barthes, é a familiaridade social 
				do poeta. Mas é um leitor sem rosto. Do meu ponto de vista de 
				escritor, a literatura “para” crianças completa (ou tenta 
				completar) a outra. Não sou uno (e quem é?) e a minha escrita 
				também não (tenho escrito igualmente teatro e crónica, até 
				crónica desportiva, e publicado um ou outro ensaio).  |