João Quental


Aurora

"vôo sem pássaro dentro" (Adolfo Casais Monteiro)
Não há dinheiro, vai-te embora, porque o telefone não toca, alta madrugada? sei acordaria a famí1ia que cavou um buraco na noite e não pode ser incomodada mesmo que às vezes a fumaça histérica do cigarro torne o nosso sono rancoroso dúbio estivemos a conversar não adiantou nada novidades? Não há dinheiro pois não venha quando quiser amo-te com decepção nem tive o que olhei em teus olhos resgatados, vírgulas para os amores, assim não virão roer todos ao mesmo tempo e o que peço é alguma coisa o que é eu não sei. Não há dinheiro se o antes foi velho e o depois pacífica compreensão difícil conhecer-te os desejos de cegueira em cegueira permaneço inocente esta raiva contra quem perguntaria estamos aqui mas a vigília cansa dirige? Vai, adormece logo, quantas vezes será preciso dizer-te não sairei mais estou feliz vigiarei ainda a porta a tranca não foi esquecida desaconselho, qualquer, rancores, dorme, anos gastei esperando, reuniu meus papéis velhos. Vai, onde puseste as mãos nasceu logo um segredo indócil quantas tardes lerás essas bobagens boa literatura aqui no canto da estante deves tentar o mundo se vinga a gratidão teu prazer não é o meu. Vai, ver-se doido é um despropósito e não chegaremos a nos divertir sempre alguém aparece sem dúvida cansaço homenagens constantes ao mesmo deus assíduo irei só mas espero concluir algo nem que seja fim nem que durma. Não há noite que não acabe em um final nada impede os finais a escuridão é prévia mas não interessa povoamos, cálculo puro, de civilizadas estrelas os olhos desse pássaro morto em viagem.
(1989)

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