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Francisco Miguel de Moura


 

Cosmovisão da obra de Moura Lima

 

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Diante da obra literária de Moura Lima: Serra dos Pilões, 1995 (reeditado pela segunda vez, recentemente); Veredão,1999; Mucunã, 2000; Chão das Carabinas, 2002 (quatro obras de ficção de peso); antes já havendo publicado Poemas Errantes, 1972 (quando estreou em livro) e Sargentão do Beco, 1971 (teatro), hesito se escrevo um artigo ou um ensaio. E me pergunto por que as Universidades e os professores universitários ainda não o escolheram como objeto de tese de mestrado ou doutorado.

Permeando o rol de seus livros, encontro outras indicações referentes ao ensaísta. Pois bem, de sua lavra, li também um ensaio dos mais interessantes, singular mesmo, a começar do título: “Pelos Sertões do Piauí”, publicado na revista “Cadernos de Teresina” nº 27, de dezembro de 1997, no qual, a pretexto de fazer uma explanação sobre os valores piauienses da literatura do passado e de hoje, faz uma viagem em profundidade sobre as nossas belezas e os nossos problemas, e introduz inovações na forma como o faz. Mas não só isto. Convidado pela Academia Piauiense de Letras, de cuja entidade é membro-correspondente no Estado do Tocantins, escreve sobre “Alvina Gameiro”, trabalho dos mais suculentos, de parceria com o amigo William Palha Dias, que vai a público na coleção “Figuras Notáveis”, em 27 de maio de 2001.

Não contente com tudo isto, Moura Lima ainda me anuncia que está pronto outro livro: “Negro d’Água – Mitos e Lendas”, a sair este ano.

Deixemos de lado se Moura Lima tem outras obras iniciadas, outros projetos, talvez algumas já em fase de finalização como o romance já anunciado: O Caminho das Tropas. É realmente uma produção formidável para a sua idade (nasceu em 2 de dezembro de 1950), ficcionista que ensarilha praticamente sua arma no final da última centúria e continua no início de século e milênio, certamente para brilhar nos anos futuros. E digo assim porque, embora já tenha ganhado prêmios nacionais, tenha sido apreciado em artigos na imprensa nacional por sumidades da crítica como Assis Brasil e Clóvis Moura e no seu Estado seja objeto de estudo nos cursos vestibular e universitários é pouco para o seu trabalho intelectual tão importante. Talvez, por se tratar de um autor do centro-oeste, o desconhecimento dos meios mais cultos – o sul, o centro e o leste do país – tenham culpa. O Brasil continua com a mania absolutista de concentração do poder aqui ou ali, onde, por razões que desconhecemos, ficam localizados os meios de comunicação mais possantes como os grandes jornais, a televisão, etc.

Então, Moura Lima, veio para quê? Dizer o quê? Qual a sua contribuição para as letras regionais e para a própria literatura brasileira?

É isto que os professores, estudantes e leitores de literatura em geral querem saber, uma vez que a crítica não pára de focalizá-lo, no seu Estado e em outros, e vem ganhando prêmios e mais distinções de caráter nacional. Por exemplo, o Prêmio “Malba Tahan” de Literatura/2000 do Concurso dos 500 Anos, da Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores – RJ, pela obra “Veredão”, contos regionais e folclóricos.

 

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Passei os dias de Carnaval relendo Chão de Carabinas, nas Sete Cidades, onde ora me sentava debaixo de um jatobazeiro, ora de uma gameleira frondosa, de um gonçalo-alves, de outras árvores que existem em redor do próprio hotel, na sede do Parque Nacional das Sete Cidades, entre Piracuruca e Piripiri, em nosso Estado. E só não escolhi um piquizeiro porque não sou nenhum Isaac Newton e poderia cair uma fruta em minha cabeça sem nenhum proveito científico. Continuava a leitura sempre à sombra, só interrompida pela mordida de vez em quando por uma ou outra mutuca, e ia recebendo a brisa rala mas fresca deste período do ano. Após um capítulo mais emocionante, levantava-me, agora já fustigado pelo sol que ia a pino, e aboletava-me no meu quarto onde principiava o trabalho de alinhamento dos pensamentos, sugestões, comparações e análises. Só agora, dois dias depois, alinhados como conclusão da releitura silente, solitária, mas bem determinada e proveitosa, volto à baila.

Se, na verdade, Chão das Carabinas fosse um romance à moda antiga como costumavam ser os regionalistas do passado, seu primeiro capítulo seria mesmo o terceiro, quando o Autor tece o retrato histórico da Vila do Peixe, na região do Tocantins, outrora Estado de Goiás, que é onde a ação principal se desenrola. Mas, não. Observa-se aí um flash-back. Já alguns personagens principais estão delineados: Arorobá e o jagunço Benjamin comandam as primeiras páginas em lances emocionantes, ali afloram também outros como o major Fibrônio Cavalcante, Gustavo Bananeira, o capitão Bentão, Cláudio Cavalcante, que vão permear todo o romance. Não se concebe romance moderno sem personagem. E o romance de Moura Lima, a despeito de ser neo-realista como convém a um bom regionalista, admite técnicas modernas que vão do flash-back às mudanças de tempo e espaço de forma orgânica, coerente, consubstancial.

Outra observação a ressaltar é que, conquanto Chão das Carabinas trate do rumoroso massacre dos Cavalcante, em 1936, e de suas conseqüências, ou melhor, o romancista tenha tomado por base a história social e política dos anos trinta naqueles sertões do Brasil, não chega a ser um roman à clef – “romance ou novela com uma chave, ou seja, em que os personagens reais aparecem sob nome fictícios”, conforme conceituação de Massaud Moisés. São exemplos de tal tipo de romance Montanha (1956), de Ciro dos Anjos, em nossa literatura, e na literatura portuguesa, Menina e Moça (1554), de Bernardim Ribeiro. Muito menos será romance de tese, aquela obra em que o Autor, a pretexto de defender uma tese social, religiosa ou filosófica, o que nem sempre consegue, inventa personagens e uma história, que no entanto ficam prejudicadas pelo premeditado das situações, pela falsificação. Há bons romances de tese na literatura universal, mas é um terreno muito arriscado. Fica para um Sartre, um Eça de Queiroz, um Graciliano Ramos, estes os principais citados pelo Prof. Massaud Moisés, da Universidade de São Paulo.

 

3
 

Por mais que os franceses tenham inovado no seu noveau roman, tirado o que é passado em busca das impressões do presente, a alma da ficção é o personagem, ali também, mesmo que a “persona” se fluidifique “em busca do tempo que se vai perdendo”. E as personagens de Moura Lima, se bem que não complicadas como no romance psicológico, são marcantes. Neste Chão das Carabinas, no romance anterior e nos seus contos, de vez em quando até aparece alguém candidato a personagem redonda. Talvez os mais fortes nem sejam os principais, os chamados protagonistas e antagonistas, mas a raia miúda. Estou lembrando de uma velha rezadeira de nome Chica do Rosário. Pelo tom e forma de sua reza, ela fala pelo Autor, é o seu alterego, embora Moura Lima tenha me dito, numa ligeira conversa, que não ficou de nenhum lado. E não ficou mesmo. A reza de D. Chica é condenatória dos grandes do lugar, dos opressores, dos traidores, dos malvados. “Diga-me, minha Mãe do céu, quem, nesta vila, não tem pecado? Valei-nos, poderoso São Miguel; com sua espada de fogo varrei da vila a legião de demônios e daí-nos a paz.” (pg.89).

Peitado pelos carniceiros do lugar para matar o major Fibrônio Cavalcante, bem fez o vaqueiro Noratão em não topar o “serviço”, embora ficasse mal visto, sendo olhado de revestrés pelos grandes do lugar. Por isto mesmo, mandou-se para a Ilha do Bananal, fazenda do major Capuba, com mulher e filhos. Os da Vila do Peixe continuariam a sofrer a tristeza do massacre dos Cavalcante, a podridão da classe dirigente acostumada a mandar e mandar sem limites sobre os pequenos, agora sob a batuta do capitão Bentão. E eles mesmos, esses mesmos dirigentes continuariam a sofrer a falta de paz de espírito:

Quem mata não se livra mais da alma do morto, a não ser quando morrer!...” (pg. 103), o velho Zé Rufino lembrava, para alertar os que participaram da chacina, quer como mandados, quer como mandantes.

Mas são tantas as personagens miúdas! Maria do Rosário, no seu desbocamento, saiu gritando: “A maldição caiu sobre a Vila, o castigo será grande! Vamos rezar, ó pecadores, para Deus ter piedade de nós! A maldição vem forte, como uma trovoada sobre nossas cabeças, e isso aqui virou um cemitério, terra arrasada, uma tapera. Nunca mais vai pra frente.” O barbeiro Janjão, o velho Anacleto, o feiticeiro Alexandre... Cada qual mereceria um comentário à parte.

A imagem do feiticeiro Alexandre é tecida de forma tão candente que entremostra bem o ritmo a que Moura Lima submeteu seu romance:

O feiticeiro da Vila, Alexandre, velho mandingueiro nas artes do demo, agora transformado em jagunço, com a carabina à mão, saiu ao cair da tarde, rezando uma oração braba e jogando terra do cemitério no rasto dos sobrinhos do major Fibrônio, Adolfo e Henrique, para amarrá-los numa corrente invisível de força, para evitar que eles escapulissem do círculo de morte. Era um tipo medonho, negro da cabeçorra proeminente, beiço de gamela, um batoreba, feito um toco queimado, de bornal de couro a tiracolo, onde continha as suas mandracas, pés de anjinhos roubados das sepulturas, nas sextas-feiras, livro preto de Caravaca.

Na mata ribeirinha, a acauã desatou o canto agourento e fúnebre. Fez-se noite, as trevas desabaram das alturas engolindo o mundo.” (pg.83).

E escreve, pontua, desenha e mostra Moura Lima aquele mundão primitivo, às vezes com veemência e brutalidade de linguagem, outras com leve humor e poesia para que o sofrimento não espante o leitor, e põe emoção em suas ações. O romance é todo um suspense só, de ponta a ponta são mortes e mortes em massa, cujos corpos são empilhados em valas comuns aonde os bichos de asas pretas e os tatus-pebas vêm saciar a fome. São gente jurada para morrer, personagens que traem e são traídos, crimes dos mais cruéis, hediondos, uns para lavar a honra, por vingança, outros por maldade e porque a vida não vale tanto quanto a honra ou tanto quanto um pedaço de terra, uma palavra a mais, uma arma, um objeto, um despeito, uma desforra, uma confusão de família.

 

4
 

Na gente que povoa o romance de Moura Lima está o modo de ser do bicho-homem daquele tempo e naqueles lugares, que, em muito, se bem analisada a situação, não nos parece diferente do que está acontecendo agora, no Brasil civilizado.

Há no Chão das Carabinas – mesmo sendo um romance de fundo histórico – o espanto do homem que entra para a civilização por força de conflitos que vêm de fora, do repentino aviltamento a que é submetido, perdendo assim o que havia de melhor em sua natureza. Espanto esse ocasionado pela ignorância, pela solidão, pelo medo, pelo que o novo desconhecido – o outro – possa causar. Espanto que provoca desordem. Essa desordem pode verificar-se ou já ter sido testemunhada, mutatis mutandi, em todas as regiões onde as mudanças se dão bruscamente, desordenadamente. Num trecho significativo, Trotski, atento à lição de Marx, já observava: “Selvagens lançaram fora os arcos e flechas e apanharam imediatamente os fuzis, sem percorrer o caminho que havia entre essas duas armas no passado. A desigualdade do ritmo, que é a mais geral das leis do processo histórico, manifesta-se com especial rigor e complexidade no destino dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades exteriores, a vida retardatária é constrangida a avançar por saltos.” (in “Os Donos do Poder”, II Volume, Raymundo Faoro, pg.365).

Um sentimento ubíquo do passado com o presente se instala no homem e ele se revolta, quer ser o dono sem ser sozinho, não quer submeter-se a nenhuma lei, nenhuma regra. Esse contexto deforma-o, ajudado pelas distorções familiares, religiosas, dos costumes e da ética, e assim vão se gerando o jagunço, o cangaceiro, o fanático, com predomínio do interesse do indivíduo sobre a coletividade, da força sobre a humanidade.

O alterego do Autor se manifesta:

Mas a verdade, minha Mãe, tem de ser dita, porque aqui na terra, neste vale de lágrimas, a mentira, de tanto ser repetida vai se tornando verdade, na boca do povo atrasado, que não enxerga um palmo adiante da venta. Ainda mais, que os mortos não podem fazer a defesa, aí os grandes da terra galopam fogosos no lombo cabeludo da mentira!” (Da reza de Chica do Rosário, pg.86).

Os versos de Carlos Drummond de Andrade, no poema “Um boi vê os homens”, dão-nos a sensação de que é assim mesmo que a natureza vê aquelas criaturas não mais natureza, mas ainda não perfeitamente humanos: “Coitados, dir-se-ia não escutam nem o canto do ar nem o segredo do feno, / como também parecem não enxergar o que é visível / e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes / e no rasto da tristeza chegam à crueldade. / Toda a expressão deles mora nos olhos...” (in revista “DF Letras”, Brasília, nº 44/46, 1997, pg. 12).

Escapam os mais simples, os mais humildes de que é exemplo o vaqueiro Noratão. Mas incrivelmente humana é a linguagem dessas figuras que encarnam as lendas e o folclore, os encantamentos, as tradições, e as transmitem como podem. A lenda é o símbolo petrificado. Entre tantos outros, um momento iluminado do livro de Moura Lima é o capítulo em que passa ao leitor a história lendária da boiúna, pela boca do pescador do Tocantins, Cipriano Jatobá, que bem merecia ser transcrito.

 

5
 

Não, caro leitor, não é função da crítica contar, resumir a história dos romances. Ao invés, deve encaminhar o leitor para sua leitura. Porque aquilo que se diz intelectualmente, criticamente, não é o que se lê. É reverso da medalha, ou “a literatura em espelho”, como disse outro grande crítico, Prof. Wendel Santos. É gratificante ler esse livro de Moura Lima. Como os outros também. Mas, enfim, Moura Lima veio para quê, dizer o quê e que contribuição está oferecendo?

Ele é pioneiro, criou a literatura do novo Estado do Tocantins, inovou aquilo que se propõe fazer (e definitivamente o fez): o romance e o conto de feição regionalista, continuando a tradição de Bernardo Guimarães, Bernardo Elias, do passado daquelas bandas de Goiás, e também na mesma linha de um Alaor Barbosa, no presente. A propósito, devemos citar a seu lado, Fontes Ibiapina, Alvina Gameiro e William Palha Dias, estes do Piauí. Sobre Moura Lima já escreveram sumidades da crítica nacional como Assis Brasil e Clóvis Moura, entre outros que por acaso não têm tanto nome. Mas nunca é pouco dizer da sua coerência, do seu ritmo frasal, e nunca esquecer que o ritmo de seus diálogos merece um estudo à parte. Sendo como é sabido, na construção do diálogo onde melhor se observa a força ou a fraqueza do ficcionista, a pedra de toque, estamos acertados que Moura Lima tem vocação, tem força, e para comprovação do dito bastaria citar um entre muitos:

Agora o rio dorme. É perigoso acordar o rio.” (pg. 68).

Citemos outro:

Vou te sangrar, cabra covarde de uma figa, como um porco!” (pg. 17)

Mas falo na coerência do discurso, dos entrechos, dos personagens. E falo mais ainda no vigor, no viço, na capacidade de captar o que há de mais importante para a língua portuguesa, como contribuição do povo, da cultura popular daquela região. Ele vive a literatura. Sua contribuição é enorme. O futuro dirá, com certeza. Aliás, já mesmo o presente vai dizendo, com os prêmios que tem ganhado e as citações nas melhores enciclopédias do ramo. Porque merece.

Lembrando as palavras do escritor (e também advogado) Joaquim de Montezuma de Carvalho, português mas conhecedor de regiões da África e da América, quando diz que “apenas as sociedades em conflito é que naturam originalidade”, penso na sorte de quem, como Moura Lima, recebeu esse rico legado que é a linguagem e a sociedade tão primitiva da região de Tocantins. Por isto os tocantinenses podem dar graças a Deus que os demais brasileiros acompanham.

Se há uma lição que a literatura precisa dar é a de escrever com sinceridade, respeitando a verdade do outro, a alma do outro mas não encobrindo nada, numa linguagem bela, harmoniosa e viva, e, assim, construir a história e as histórias que, de uma forma ou outra, balizarão o futuro. Sem literatura não há verdade nem beleza. Sem literatura o homem pecará mais. Sobretudo, o homem sofrerá imensamente. “Daí que, a literatura, obra de imaginação, especialmente a novela (traduza-se por romance), constitui o instrumento adequado para apreender a vida em sua realidade concreta” (in “O Sabor da Vida”, de Gilberto de Melo Kujawski, pg.46).

Sim, Moura Lima é fértil e original. E sabe como apreender o segredo da vida de sua gente, nossa gente. Não deve nada a ninguém. Tem tudo a dar do que recebe de seu meio, Goiás onde nasceu e o Tocantins onde vive e trabalha com garra, a advocacia como profissão e a literatura como destino.

Teresina, 16 de fevereiro de 2002