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Ivan Junqueira




Entrevista a José Castello


 

O poeta Ivan fala do ódio entre os poetas. Fala também da lista dos 20:
Estado - Que avaliação você faz da poesia brasileira de hoje?
Ivan Junqueira - Hoje se faz uma poesia muito boa, no Norte, no Nordeste, no Brasil inteiro, mas que permanece desconhecida. Faz-se boa poesia, mas a circulação dos livros é um inferno. No Brasil, que é tão grande, os poetas ficam muito isolados - e ainda falam muito mal uns dos outros, aumentando ainda mais essa distância. Recentemente estive em Fortaleza, cidade onde os poetas brigam entre si, se odeiam. Há muitos lugares em que poetas de grupos diferentes jamais se falam, nem mesmo se cumprimentam! A circulação da poesia fica, em conseqüência, ainda mais difícil.

[O Estado de São Paulo, Sábado, 9 de janeiro de 1999]

 


Ivan Junqueira lança sua última coleção de ensaios


O poeta, tradutor e ensaísta garante não ter mais nada guardado na gaveta; 'O Fio de Dédalo' reúne 45 textos breves, publicados de forma dispersa, que tratam de temas variados, como a fraude das 'Cartas Portuguesas', a poesia de Cruz e Sousa e a prosa de José Guilherme Merquior

JOSÉ CASTELLO
 

Poeta, tradutor, ensaísta e um dos mais respeitados intelectuais do Rio de Janeiro, Ivan Junqueira, de 64 anos, está com um livro novo. O Fio de Dédalo (o título refere-se ao filho de Eupálamo, construtor do labirinto no qual o rei Minos enclausurou o Minotauro) reúne 45 ensaios breves sobre temas variados como a náusea e a transgressão, a obra ensaística de José Lins do Rêgo, a fraude envolvendo as Cartas Portuguesas atribuídas a sóror Mariana Alcoforado, de Beja, e a obra de José Guilherme Merquior, mas privilegia a poesia e os poetas - como Rimbaud, Cruz e Sousa, T.S. Eliot e François Villon. São ensaios curtos, publicados de forma dispersa na imprensa, e que agora, como já ocorreu em livros anteriores, Junqueira reúne na forma de uma antologia. Que, ele assegura, será a última do gênero, já que há cerca de três anos tomou a decisão, que considera irrevogável, de não mais escrever ensaios breves para a imprensa diária. "Depois desse livro, não tenho mais ensaios guardados na gaveta", assegura. O título também se refere, indiretamente, ao fio de Ariadne, graças ao qual Teseu escapou do labirinto de Creta após matar o Minotauro.

Crítica e literatura - 1999 é um ano importante para o polivalente Ivan Junqueira. Além de lançar O Fio de Dédalo, ele se dedica a trabalhar na organização de sua Poesia Reunida, a ser co-editada pela Biblioteca Nacional. Pelo menos dois livros importantes, hoje absolutamente fora de mercado, também têm reedições programadas para 1999: Testamento de Pasárgada, ensaio sobre Manuel Bandeira publicado em 1981, e A Rainha Arcaica, coletânea de poemas de 1980. Depois de militar muitos anos na crítica literária publicada na imprensa diária (até mesmo nas páginas do Estado), Junqueira decidiu afastar-se do jornalismo literário, a respeito do qual não esconde certa desilusão. Decidiu ainda deixar de lado sua profícua carreira de tradutor - que ele nega ter sido, na verdade, uma carreira, pois sempre traduziu só o que desejou e jamais encarou a tradução como uma profissão, mas sim como um prazer intelectual.

Apesar de declarar-se herdeiro do modernismo, mas acrescentar logo que é também seu opositor, Junqueira tem sido sempre um poeta independente, desligado de grupos e escolas, um solitário a compor, por mais de 30 anos, uma obra sólida reunida hoje em seis livros. O mais recente deles, A Sagração dos Ossos, publicado pela Civilização Brasileira em 1994, é uma pungente reflexão sobre a morte - Junqueira escreveu-o depois de um duro período de oito anos em que perdeu o pai, a mãe e duas irmãs. Publicado, ele mergulhou num longo período de silêncio que só agora começa a dissipar-se.

Força encantatória - Junqueira é um poeta que aposta na força encantatória da poesia: herdeiro do modernismo, vê com suspeita o afã pelo novo que comove os poetas mais jovens e sabe que todo esforço de renovação deve ser, também, um empenho de purificação da língua, como propôs Eliot, e não de sua destruição, como muitas vezes se pratica. Em longo e densa entrevista concedida a Floriano Martins (publicada em Escritura Conquistada, magnífico volume de diálogos co-editado em 1998 pela Biblioteca Nacional), Ivan Junqueira diz que, ao contrário do que postulava Ezra Pound, não basta "make it new", mas que é preciso também, em certa medida, "make it old", "pois não há modernidade se não se recorre à lição do passado". A poesia de Junqueira é pautada, em conseqüência, pelo equilíbrio e pela serenidade, mas também pela independência criativa pois, como ele mesmo já declarou, "a realidade não precisa de nós".

Ivan Junqueira defende também uma crítica que não se interponha entre o leitor e a obra, mas que seja, isso sim, pautada pela empatia e pela compreensão. Em O Fio de Dédalo, põe em prática essa tese. Com suavidade exemplar, Junqueira dialoga com os escritores a respeito dos quais escolheu escrever, entre os quais estão poetas contemporâneos como Ruy Espinheira Filho, Bruno Tolentino e Alexei Bueno. Vai dos gregos à poesia britânica do século 20, de Shakespeare a Rimbaud. Sem vacilar, afirma a grandeza de Cruz e Sousa - que seria, a rigor, nosso primeiro poeta autenticamente moderno. Faz ainda a defesa enfática de Bruno Tolentino, que tem a poesia envolvida por tantos preconceitos e incompreensões: "Ao contrário da imensa maioria daqueles que hoje exercem entre nós o ofício da poesia, Bruno Tolentino é um poeta culto, um poeta de poetas e, por conseqüência, um crítico de poetas", escreve.

Essência poética - Escrevendo sobre Orides Fontella (a poeta paulista recém-falecida), Junqueira acaba por oferecer uma suma da atividade poética: "Mas o segredo dessa altíssima poesia reside justamente aí, nessa linguagem de essencialidades, nesse discurso cuja limpidez dói até no próprio espírito, nessa dicção exata e cristalina..." É para tocar na essência, e não para se perder em exercícios fúteis, que Ivan Junqueira se tornou poeta e isso está repetido em cada um de seus versos. Ele acredita que todo poeta autêntico sempre cria uma linguagem, até porque a literatura, ao contrário das outras artes, tem a linguagem, e apenas ela, como matéria prima.

O Fio de Dédalo traz, pelo menos, dois ensaios marcantes. No primeiro, Lins do Rêgo Além da Ficção, Junqueira mostra um Zé Lins telúrico e vitalista, um homem sem ambições que dizia a respeito de si "nunca ter imaginado que fosse capaz de fazer um romance". Praticando o ensaio como um gênero tangencial da crônica, Zé Lins deixou uma espessa prosa de não-ficção, hoje completamente esquecida, marcada pela coragem e pelo empenho em "salvar a palavra", emprestar-lhe vigor e fogo. Outro momento importante da coletânea é o ensaio A Fraude das Lettres Portugaises, sobre o célebre livro atribuído a sóror Mariana Alcoforado e na verdade escrito por seu pretenso tradutor para o francês, Guilleragues, falsificação que enganou a muitos críticos importantes durante longo tempo e que levou as Cartas Portuguesas a alcançar, desde sua publicação, em 1669, até o fim do século 19, cerca de 90 edições. Apesar da fraude, Junqueira mostra que as Cartas Portuguesas, com sua defesa do amor como desvario, ajudaram a preparar o romantismo e até influenciaram Rilke - que as traduziu para o alemão.

Acesso ao coração - A leitura de O Fio de Dédalo seduzirá aqueles leitores que buscam a crítica para aproximar-se dos livros e não para deles se afastar. Que encaram a crítica literária como ponte e não como obstáculo. Ponte de acesso ao coração da escrita, que deve jogar sempre a favor daquilo que o poeta desejou.

Na quarta-feira, por telefone, enquanto se preparava para mais uma reunião de trabalho na Biblioteca Nacional em que discutiria a publicação de sua Poesia Reunida, Ivan Junqueira deu a entrevista que se segue.
 



Estado - Como você se sente na condição tripla de poeta, crítico e tradutor?
Ivan Junqueira - Comecei como poeta, nos fins dos anos 50. Guardo o que escrevi antes disso, uma produção que nunca foi publicada, e nunca será publicada, e conservo apenas como matéria de curiosidade. Mesmo meu primeiro livro de poemas, Os Mortos, que saiu em 1964 quando eu já tinha 30 anos, só foi publicado graças à pressão de amigos. Eu não queria publicá-lo, mas os amigos, sobretudo Aníbal Machado e Élcio Martins, insistiram e o livro saiu. Mesmo assim, logo depois que os 300 exemplares da primeira edição começaram a chegar às livrarias, eu me arrependi e tratei de recolhê-los, guardando-os apenas para dar a amigos muito próximos. Dessa primeira edição de meu primeiro livro, que eu saiba, só o crítico Antonio Carlos Sechin, de quem sou grande amigo e que é viciado em sebos, guarda um exemplar.

Estado - Nem mesmo você conserva um?
Junqueira - Eu tenho, sim. E tenho, em parte, graças a uma história misteriosa, meio fantástica. Em 1993, eu estava em Lisboa com o Ferreira Gullar e, por acaso, entramos em uma livraria chamada A Barateira - que de barateira não tinha nada. Eu estava em busca de um livro de um poeta espanhol, um livro esgotado e, como tinha tempo, percorri uma a uma as prateleiras da casa. Pois na última prateleira, o penúltimo livro era um exemplar da primeira edição de Os Mortos que eu, é claro, comprei imediatamente, por 600 escudos, posso recordar ainda! E é esse exemplar, que foi parar em Lisboa, sabe-se lá como, que guardo ainda hoje comigo.

Estado - Posso concluir que, antes de ser tradutor e crítico, você se considera um poeta?
Junqueira - Bem, as três vertentes surgiram juntas e não sei se é possível separá-las. Logo depois da publicação de Os Mortos, comecei a ler Eliot compulsivamente. Tomei-me por uma paixão tremenda pela poesia de Eliot, que me levou a trabalhar, em silêncio, numa tradução dos Quartetos. Um dia, eu a mostrei ao Antonio Houaiss, que gostou muito e conseguiu que fosse publicada pela editora Civilização Brasileira. A primeira edição dessa minha primeira tradução é de 1967. Mais tarde, traduzi a poesia completa de Eliot para a Nova Fronteira, uma edição que chegou a vender três tiragens em dois meses e a aparecer na lista de mais vendidos da Veja.

Estado - O poeta foi então sufocado pelo tradutor?
Junqueira - Realmente, só voltei a publicar poesia, depois disso, em 1977. E com um longo poema reflexivo e filosófico, chamado Três Meditações da Corda Lírica. Na verdade, tomei em seguida ao Eliot o caminho do ensaísmo crítico. Tudo se deu por acaso: a Nova Fronteira encomendou-me uma antologia poética de Manuel Bandeira, que resultou em Testamento de Pasárgada, publicado em 81 e esgotado, que está divido em 20 blocos de poemas, cada um deles apresentado por um pequeno ensaio. Esse livro será reeditado esse ano, assim como A Rainha Arcaica, meu terceiro livro de poemas, de 1980, que também está esgotado.

Estado - Você considera que chegou a correr o risco de desviar-se da poesia, de esquecê-la?
Junqueira - Não. Na verdade o ensaísta e o tradutor não existiriam se não fosse o poeta. Eu sempre traduzi o que quis. Minha sorte como tradutor reside nisso: jamais me obriguei a nada. Não posso ser considerado, por isso mesmo, um tradutor profissional. Só traduzi poetas e prosadores que têm afinidades com meu mundo espiritual e que eu escolhi. Sempre escolhi o que traduzi - e não pode existir postura mais antiprofissional. Meu ensaísmo e minha crítica, por outro lado, padecem também de uma limitação: são ensaios e críticas escritos por um poeta. Não sou crítico literário de formação. Foi a poesia, o gosto pela poesia, que me levou ao ensaísmo.

Estado - Como você se definiria como crítico literário?
Junqueira - A rigor, eu não pertenço a escola nenhuma. À distância, sou um herdeiro do modernismo, mas hoje sou também um crítico do modernismo. Evito também a crítica hermenêutica; em conseqüência, a crítica que escrevo não é sentenciosa. Parto da empatia para tentar compreender aquilo que o outro escreveu - e que é, quase sempre, um tipo de literatura que não faço. A crítica literária, a meu ver, deve ser um ato de empatia e de compreensão.

Estado - E como poeta, como se define?
Junqueira - Como poeta pertenço à chamada geração 60, mas só cronologicamente, porque não acredito que essa geração tenha existido, pois nunca teve um ideário, uma escola, nunca teve princípios literários. Na verdade, acho que neste século só existiu uma escola: o modernismo. A geração de 45 foi apenas uma reação contra o modernismo. E o concretismo e a praxis desenvolveram-se também como reação ao congelamento formal, inadmissível, proposto pela geração de 45. Só os modernistas formaram uma escola verdadeira.

Estado - Que avaliação você faz da poesia brasileira de hoje?
Junqueira - Hoje se faz uma poesia muito boa, no Norte, no Nordeste, no Brasil inteiro, mas que permanece desconhecida. Faz-se boa poesia, mas a circulação dos livros é um inferno. No Brasil, que é tão grande, os poetas ficam muito isolados - e ainda falam muito mal uns dos outros, aumentando ainda mais essa distância. Recentemente estive em Fortaleza, cidade onde os poetas brigam entre si, se odeiam. Há muitos lugares em que poetas de grupos diferentes jamais se falam, nem mesmo se cumprimentam! A circulação da poesia fica, em conseqüência, ainda mais difícil.

Estado - Que danos práticos isso acarreta?
Junqueira - Agora mesmo, a revista Poesia Hoje, editada pela Biblioteca Nacional e da qual sou editor-executivo, resolveu fazer uma antologia de poetas brasileiros contemporâneos. Escolheu 120 consultores, dos quais 98 enviaram seus votos, e chegou a uma seleção de 20 poetas. Mas parece que a edição não vai sair, tal foi a agitação ensandecida que se formou em torno do projeto. Há gente protestando em toda parte porque não foi incluída, a escolha desencadeou uma briga, um ódio que parece interminável. Mas como seria possível virar a mesa diante de uma escolha feita por 98 pessoas conceituadas? Apesar disso, a antologia está comprometida e é capaz de não sair, pelo menos com o selo da Biblioteca Nacional. Ainda existe uma chance de editá-la, pois existem duas editoras comerciais que já manifestaram interesse em encampar o projeto. Mas, se dependesse dos poetas, ela não sairia.

Estado - Por que você diz que O Fio de Dédalo é sua última coletânea de ensaios?
Junqueira - Porque com ele se esgotam os ensaios literários que eu tinha na gaveta, todos publicados originalmente na imprensa diária. E há uns três anos tomei a decisão de não escrever mais ensaios para jornais e revistas. Não tenho portanto outro inéditos para formar novas antologias. Meu último livro de poesia, A Sagração dos Ossos, é de 1994; quero dedicar-me a escrever poesia agora, retornar ao ponto de partida.

Estado - Por que você tomou a decisão de não mais escrever para a imprensa?
Junqueira - São muitas as razões. O fôlego está acabando um pouco e agora quero dedicar-me a coisas mais definitivas. E escrever para a imprensa, embora não pareça, dá muito trabalho. Tenho, por exemplo, o projeto de escrever um ensaio sobre a vertente medieval na lírica de Bandeira. Publiquei muito na imprensa entre 1977 e 1985. Entre 1986 e 1992, 93, ainda escrevi um pouco, mas de modo mais rarefeito. De uns dois anos para cá, quando me fazem uma encomenda, delicadamente recuso. Há também um certo desencanto com os suplementos literários brasileiros, não posso negar, embora minha mulher seja atualmente a editora de um deles. Não estou criticando, o que se passa é apenas um sinal dos tempos. Os jornais têm suas razões para mudar os suplementos, eu é que tenho saudades dos suplementos antigos. Houve muitas mudanças de mentalidade e os jornais não podem ir contra isso. Mas é uma pena que, no Rio, só um rodapé literário ainda sobreviva - o do Wilson Martins. O leitor fica limitado a um único ponto de vista.

Estado - Quais são seus projetos em andamento?
Junqueira - Cheguei a um momento da vida em que decidi me concentrar inteiramente na poesia. Acontece que o último livro, A Sagração dos Ossos, publicado em 1994, me causou grande sofrimento, porque abordei um tema do qual na verdade não queria me aproximar: a morte. Num espaço de oito anos perdi meu pai, minha mãe e duas irmãs. Nunca senti a morte tão próxima. Acabei escrevendo o livro como uma catarse. Mas, depois de A Sagração dos Ossos, mergulhei num silêncio muito grande. Só agora começo a escrever alguns poemas e assim mesmo muito devagar. O que não chega a ser novidade, porque sempre escrevo e publico devagar. Como eu rejeito muito o que eu suponho que não presta, a produção custa muito a tomar corpo. Há poetas, hoje, que lançam um livro de poemas novos a cada dois anos. Não consigo compreendê-los. Beaudelaire ficou a vida toda escrevendo o mesmo livro, Leopardi ao morrer deixou apenas 40 poemas, Dante de Milano foi também um poeta de livro único. Não entendo como se possa escrever com tanta rapidez.

Estado - E o projeto de um volume de poemas reunidos?
Junqueira - Foi uma idéia do Eduardo Portella. No ano passado, ajudei a organizar cerca de 30 livros de poetas brasileiros. Feito o trabalho, o Portella disse-me: "Agora é a hora de organizar os seus." A Biblioteca Nacional, por decisão dele, vai bancar uma co-edição, que poderá ser com a Record, que por contrato tem prioridade sobre tudo o que escrevo, ou com a Nova Fronteira, que já publicou livros meus. Não será uma "poesia completa" porque estou expurgando alguma coisa. Mas estou incluindo outras coisas também que expurguei, por engano, de edições mais recentes. Resgatando versos que deixei de fora e que não deveria ter deixado. Estou tentando reencontrar um olhar inocente diante do que faço.

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