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            Floriano Martin Em honra da poesia: a obra de Dora 
            Ferreira da Silva
 
 
 
  4/9/99
 Poesia Reunida traz o trabalho de uma autora que teve suficiente 
            paciência para ser lida pelos brasileiros somente aos 80 anos. Que 
            os brasileiros saibam se dignar diante de tamanha honra
 
 
 Um enorme 
            entusiasmo pela vida tem sido a característica principal de Dora 
            Ferreira da Silva. Em entrevista a Gilberto Kujawski e Hermes Nery, 
            em 1989, sintetiza: “Nós é que damos sentido ao tempo, e buscamos 
            fazer o melhor nesta fração de tempo que é a nossa vida aqui” – isto 
            a partir de anotação de seu marido que havia encontrado em um livro: 
            “Entramos na história quando ela já começou, e saímos antes de ela 
            terminar.”  Corroboração 
            imediata com uma leitura de sua poética sugerida por Euryalo 
            Cannabrava, quando ali destaca “a busca obstinada de um rigor que, 
            violentando todos os cânones da linguagem prosaica, instaura sobre 
            as suas ruínas a sintaxe lírica do poema absoluto, sem condições 
            restritivas”.  Abordagens 
            complementares: Cassiano Ricardo sublinhava a presença de um 
            misticismo, “tendendo sempre para o mistério”; Ivan Junqueira 
            salienta o convívio perfeito de ambientações “a um tempo cósmica e 
            celebratória” em suas imagens; tudo indo desaguar em uma “expressão 
            religiosa” percebida por Vilém Flusser.  É ele quem nos 
            dá sua melhor tradução, ao observar que em sua poética “o símbolo 
            não é mediação primeira entre o sujeito e coisa concreta, mas entre 
            o sujeito e o transcendente”, concluindo que “o significado último 
            do símbolo não é uma coisa no mundo vivo, mas o que está do outro 
            lado dos limites do mundo vivo”.  Simbolismo e 
            Romantismo, tanto quanto a vertente enriquecida pelo Surrealismo, 
            são acentos indispensáveis à compreensão da poesia de Dora, o mesmo 
            valendo para muitos poetas de sua geração, que é a mesma de Vinícius 
            de Moraes, Gerardo Mello Mourão e Manoel de Barros, onde merecem 
            ainda ser recuperadas as obras de Dantas Mota e Manuel Cavalcânti.  Nos versos 
            finais de um poema dedicado a Anais Nin reflete: “Musa da ventania 
            amiga dos gélidos/consumiu-te o fogo em que ardias”, sugerindo em 
            entendimento de que devemos ser iluminados e não queimados pelo fogo 
            que nos conduz através da escuridão perene que funda todas as coisas 
            à nossa volta. Mergulho no risco, mas não descompasso ante os 
            deslizes eventuais.  Aí radica a 
            “lírica órfica” apontada por Ivan Junqueira ou a busca de um “poema 
            perfeito” que destaca Euryalo Cannabrava. Melhor dirá a poeta ao 
            evidenciar que “há todo um mito da noite, este anoitecer que 
            impregna em você, e anoitece junto como você, e você sente-se em 
            estado de graça por participar da noite no que ela tem de poético e 
            impregnante”. A noite aludida não é senão nossa intimidade com o 
            abismo, a revelação essencial da natureza humana, a restauração do 
            sagrado, um risco.  Todos esses 
            símbolos preciosos encontram-se na obra de Dora, cujo princípio 
            poético aponta para uma meditação constante sobre a condição humana, 
            não sem compreendê-la como indissociável da natureza como um todo. 
            Não se trata de uma solitária na tradição poética brasileira, desde 
            que recuperemos muitos nomes soterrados por intenção ou 
            displicência.  O nome de Dora 
            é bastante conhecido graças à sua incansável atividade tradutória, 
            cujos exemplos de maior fôlego constituem a Obra Completa de Carl 
            Gustav Jung e a poesia de Rainer Marie Rilke, mas onde se incluem 
            traduções de San Juan de la Cruz, Angelus Silesius e Saint-John 
            Perse.  Contudo, outra 
            particularidade de seu envolvimento com a poesia a ser mencionada é 
            o fato de haver fundado e dirigido duas importantes revistas – 
            Diálogo, nos anos 50, ao lado do marido, o filósofo Vicente Ferreira 
            da Silva, e Cavalo Azul, nos anos 80 – publicações já esquecidas, 
            mas que representaram, em seu tempo, um essencial repositório da 
            criação e sua reflexão.  Quanto à sua 
            obra poética, vinha já de muito necessitada de uma difusão mais 
            ampla.Temos finalmente a edição de sua Poesia Reunida, que recolhe, 
            entre outros, Andanças (1970), Uma Via de Ver as Coisas (1973) e 
            Jardins (1979), mais poemas traduzidos para o alemão por Vilém 
            Flusser, que, ao estudo de sua poética, dedica capítulo do livro 
            Bodenlos: eine philosophische Autobiographie (Dullseldorf, 1992).  Tratemos de 
            lê-la. A densidade de sua poética, não se diluindo ao plano das 
            consternações ou das máximas de efeito, impõe o recolhimento natural 
            à compreensão de toda grande poesia. Dora teve suficiente paciência 
            para ser lida pelos brasileiros somente aos 80 anos. Que os 
            brasileiros saibam se dignar diante de tamanha honra. 
 
 (POESIA REUNIDA, de Dora Ferreira da Silva. Topbooks, 483 págs., R$ 
            42,00)
 Floriano Martins é escritor, autor de Escritura Conquistada
 
 Copyright © 1999 Jornal da Tarde
 
 
 
  Leia a obra de Dora Ferreira
 
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