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			Bráulio Tavares 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
             
            Os martelos de Trupizupe 
			
            
			 
			  
			
             
			 
			O verso de martelo 
  
			
            O martelo é o verso mais bonito que se 
			escuta da voz dum cantador.  
			
            É um verso de dez sílabas, mas o que o 
			caracteriza não é só o número de sílabas. É a acentuação obrigatória 
			na terceira, na sexta e na décima, ou seja:  
			
             
			di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM.  
			
              
			
            Eu ouço este verso como uma linha 
			feita de três segmentos, os dois primeiros com três sílabas e o 
			último com quatro. Chamo a isto, no meu vocabulário poético para uso 
			próprio, uma linha de verso com ritmo 3-3-4. 
			
            É um verso muito presente na poesia 
			ibérica, embora decerto deva ocorrer em qualquer cultura onde se 
			pratique o verso decassílabo. Em nossa língua, no entanto, é um 
			ritmo já presente desde Camões: 
			
             
			Alma minha gentil que te partiste... 
			
              
			
            Os poetas brasileiros que praticavam 
			os tipos clássicos de decassílabo preferiam outras cadências, como 
			as dos versos com ritmo em 4-4-2 ou 2-4-4, mas volta e meia usam um 
			3-3-4 igual ao do martelo. Como em Bilac, por exemplo: 
			
              
			
				
					
						Como a floresta 
						secular, sombria (4-4-2) 
						livre do passo humano e do machado, (4-2-4)  
						onde apenas, horrendo, ecoa o brado (3-3-4) 
						do tigre, e cuja agreste ramaria (2-4-4) | 
					 
				 
			 
			
              
			
            Esta é uma estrofe bem típica de 
			Bilac, espalhando pelos quatro primeiros versos do soneto os quatro 
			tipos principais de ritmo interno do decassílabo, sendo que o nosso 
			martelo sertanejo aparece na terceira linha. (Um bom recitador pode 
			fugir a essas cadências um tanto repetitivas depois de algum tempo; 
			não é preciso muito esforço para ver que o ritmo espontâneo da 
			segunda linha é 1-5-4) 
			
            O 3-3-4 aparece muito em na nossa 
			canção popular: 
			
             
  
			
				
					
						Minha vida era um 
						palco iluminado, 
						eu vivia vestido de dourado... | 
					 
				 
			 
			
              
			
              
			
            “Chão de estrelas”, o clássico de 
			Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, também passeia por outros ritmos, 
			mas a cadência do verso de martelo retorna ao longo de toda a 
			canção.  
			
            O mesmo acontece com um dos primeiros 
			clássicos de Gilberto Gil, “Procissão”: 
			
             
			Mas se existe Jesus no firmamento 
			cá na terra isto tem que se acabar! 
			
              
			
            Ao contrário da música popular, onde 
			ao longo dos versos o compositor pode variar de ritmos conforme lhe 
			der na veneta e na inspiração, no repente nordestino o cantador tem 
			que manter-se no interior de formas fixas, que só lhe dão relativa 
			liberdade métrica. No caso do martelo agalopado, espera-se que 
			todos, absolutamente todos os versos improvisados, tenham a cadência 
			3-3-4:  
			
             
			ma-ra-CÁ, ma-ra-CÁ, ma-ra-ca-TU.  
			
              
			
            Nem sempre, e às vezes quase nunca, o 
			poeta consegue. Mas sabe que o modelo a ser seguido é este. 
			 
			 
			A estrofe de martelo  
  
			
            Comentei até aqui o verso, a linha do 
			martelo. A palavra “verso” é usada de maneira meio indisciplinada 
			por todo mundo, inclusive eu mesmo. Em linguagem mais rigorosa, 
			verso é cada linha do poema; e cada conjunto de linhas é uma 
			estrofe. Na linguagem coloquial, contudo, verso pode ser sinônimo de 
			estrofe ou até de um poema inteiro. O sujeito diz: “Olha que verso 
			bonito esse de Fulano” – e recita um poema que dura cinco minutos.  
			
            A estrofe típica para se usar o verso 
			do martelo é a décima, ou estrofe de dez linhas. Claro que qualquer 
			poeta usa estrofes e versos conforme lhe der na veneta; mas se 
			quiser seguir o modelo clássico dos poetas nordestinos, ele precisa 
			saber que o “default”, o padrão do que chamamos martelo é o 
			decassílabo de cadência 3-3-4 usado numa estrofe de dez versos cujo 
			esquema de rima é geralmente ABBAACCDDC. (Uma exceção honrosa a esta 
			regra vem comentada mais adiante no capítulo “O Marco Marciano”) O 
			nome técnico dessa estrofe é Martelo Agalopado em Décima: 
			
             
			1. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM A 
			2. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM B 
			3. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM B 
			4. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM A 
			5. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM A 
			6. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM C 
			7. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM C 
			8. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM D 
			9. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM D 
			10. di-di-DUM, di-di-DUM, di-di-di-DUM C 
			
              
			
            As letras iguais querem dizer que os 
			versos nas respectivas posições terminam com a mesma rima. A fórmula 
			ABBAACCDDC nos diz, portanto, que uma rima qualquer a que chamamos A 
			deverá ser sempre a mesma na primeira, na quarta e na quinta linhas; 
			uma outra rima, B, estará presente na segunda e na terceira linhas; 
			as linhas de número 6, 7 e 10 usarão uma terceira rima, chamada C; e 
			uma quarta rima, D, estará nas linhas 8 e 9. 
			
            A décima não é usada apenas com o 
			martelo; também aparece, com este mesmo esquema de rimas, em vários 
			estilos de cantoria com versos de 7 sílabas, e no “galope 
			beira-mar”, que usa versos de 11 sílabas. 
			
            A estrofe típica do martelo, portanto, 
			tem uma bela simetria: são dez versos de dez sílabas, 100 sílabas 
			poéticas amarradas numa cadência hipnoticamente repetida, e num 
			esquema de rimas que mesmo um poeta erudito precisa de bastante 
			estudo para poder dominar. 
			 
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