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Ariadne Araújo


 


Os novent'anos de Patativa do Assaré


Miscelânea de folhetos


 


O álbum Patativa do Assaré - Cordéis é uma síntese da produção literária de Antônio Gonçalves da Silva: a novela picaresca, o conto fantástico, proselitismo, ecologia e informação estão presentes. A coletânea, organizada pelo pesquisador Gilmar de Carvalho, foi publicada em 1993.


 

Seria bem natural se o poeta, mesmo aposentada a viola, companheira de começo, saísse a divulgar seus versos no suporte conhecido do cordel. Assim o fazem e fizeram gerações de contadores de história e vates caminhantes pelo sertão. Mas Patativa do Assaré zela por sua musa, comerciar seus poemas nunca seria um mister. E Antônio Gonçalves da Silva pouco se permitiu utilizar a forma do folheto, livreto em quarto de página, a capa resumindo em cromo ou gravura o conteúdo das páginas, em geral 16. Em 1993, por iniciativa do pesquisador Gilmar de Carvalho, saiu uma coletânea de criações do Patativa em 13 cordéis, o conjunto acondicionado numa caixinha de cartolina. Este álbum é amostra representativa da diversidade do artista de Assaré.

Brosogó, Militão e o Diabo é uma novelinha picaresca, com pitadas de fantástico, aqui representado pela figura do Cão. Miçangueiro (ou camelô), Brozogó corria mundo com sua maletinha. Na fazenda de Militão, nada vendeu, saiu devendo meia dúzia de ovos. No dia de pagar, o coronel cobrou uma exorbitância: cada ovo viraria uma poedeira, o pobre do ambulante lhe devia todo um galinheiro. Foi salvo pelo Diabo, que advogou em seu favor, livrando Brozogó com o engodo de plantar feijão cozido. Do clássico árabe As Mil e Uma Noites, Patativa adaptou a História de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; do romanceiro ibero-sertanejo, a saga aventurosa de Abílio e seu Cachorro Jupi.

O sertão nordestino é o tema maior de Patativa. Nessa coleção foram incluídos os poemas Emigração, A Triste Partida e ABC do Nordeste Flagelado. Como elucidam os títulos, a questão da seca e seu séquito de retirantes dão o mote. Em O Meu Livro, o poeta, como o personagem Chico Braúna, conta em versos sua profissão de fé: ser o cantor da natureza, traduzindo em poesia a linguagem dos bichos, das plantas, dos lugares. No folheto O Doutor Raiz, Patativa alerta contra os falsos curandeiros, ao mesmo tempo que também critica a medicina popular. Glosas sobre o Comunismo apresenta um Patativa veemente versando sobre o mote ``o comunismo fatal / não queremos no Brasil''.

Um dos mais belos poemas-denúncia de Patativa do Assaré também está presente no álbum. Em O Padre Henrique contra o Dragão da Maldade, o poeta conta a trágica história do jovem padre pernambucano, ligado a D. Hélder Câmara e à Teologia da Libertação. Antônio Henrique tinha apenas 27 anos quando foi assassinado pelas forças repressivas, no violento ano 1969, em Recife. Outro folheto onde a lira de Patativa dedilha o protesto é Vicença e Sofia ou o Castigo de Mamãe, um libelo contra o preconceito racial. (Eleuda de Carvalho)

Destino advinhado
 

Antônio Gonçalves tinha 20 anos, seu improviso à viola já chamava a atenção dos moradores do Assaré e da região do Cariri. Um dia de 1929, um seu parente, José Montoril, comerciante em Macapá, carregou o menino talentoso para o Norte. Foi a primeira vez que Antônio viu o mar, o trem de ferro, os gaiolas que subiam e desciam rios, a fartura de igarapés, a chuva de toda tarde. Montoril apresentava o primo poeta pelos lugares em que passavam. Chegando em Belém do Pará, o artista conheceu outro conterrâneo, juiz de direito, jornalista e apreciador da cultura popular, José Carvalho.

Natural do Crato, não é de estranhar o "nome de padeiro'' - Cariri Braúna - que José Carvalho escolheu para ingressar na Padaria Espiritual, agremiação literária fundada por Antônio Sales em 1892. Há tempos radicado em Belém, José Carvalho preparava um livro sobre as diferenças entre o sertanejo e o nortista. Publicado em 1930, O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará tem um capítulo intitulado "O Patativa''. Estava batizado aquele que será o maior poeta popular do Brasil. Diz José Carvalho:

"Nesta semana passada, apareceu-me aqui, vindo do Ceará, o negociante José Montoril. Tendo ido, em visita, à sua terra - o Assaré - lá encontrou um cantador e tocador de viola, autêntico e dos bons, apesar de ter apenas 20 anos de idade. É o Antônio Gonçalves, já crismado por Patativa''. José Carvalho reproduz trechos de desafios entre Patativa (depois, do Assaré) e outros emigrados poetas nordestinos. O velho padeiro'' finaliza o artigo com esta frase profética: "E creio que bastará o que aí fica para a imortalidade do Patativa''. E era só o começo...

Memória de Patativa
 

Barba, cabelo e bigode. O barbeiro mora perto, é barateiro e o cliente tem motivo para o capricho: o aniversário de 90 anos, festa pra três dias em Assaré. O poeta desmente, diz que é preguiça de fazer a obrigação matinal. Mas - ele já ouviu falar -, vem muita gente importante, de São Paulo, Recife, Fortaleza, até o governador. A lembrança do convidado vem a calhar. Afinal, passa boas tardes a balançar-se na cadeira de pernas desenhadas em forma de oito, presente de Tasso Jereissati no aniversário de 88 anos.

Agora a festa é diferente. Para quase um século de vida, vale até a inauguração do Memorial Patativa do Assaré, em Assaré. O prédio, do outro lado da praça Nossa Senhora das Dores, quase em frente à casa do poeta, é um sobradinho de três andares, antigo, suntuoso, abandonado até bem pouco tempo. De muita idade também, neste caso, secular. O casarão serviu de morada de velhos coronéis, foi cadeia pública, escola, sede de sindicato e hotel.

Tombado pelo Patrimônio Histórico do Município, o sobrado ganhou telhado, madeiramento, portas, janelas, grades e uma demão de tinta. Tudo novo, mas de acordo com arquitetura original. Portas e janelas verde musgo. Fachada em amarelo intenso. Por dentro, o branco nas paredes, verniz nas escadas e no forro. Algumas modificações internas foram feitas para a exibição do acervo - discos, livros, medalhas, documentos e fotos. Painéis, estandes, computadores, biblioteca.

O auditório, construído no quintal da casa velha, ganhou o nome da mulher falecida do poeta, Belinha Cidrão. Patativa diz obrigado, mas é desagradável ir a uma festa sem ver nem ouvir. "Não sei o sul nem o norte''. Mas vai, nada de fazer desfeita depois de um trabalhão desse. Afinal, gastaram muito dinheiro nesse memorial, diz ele. Patativa não sabe quanto, mas a prefeitura apresenta a conta: R$ 150 mil só na restauração, R$ 99 mil para equipar. O prédio, no entanto, espera tudo isso desde 1994, quando foi comprado por CZ$ 931 mil cruzados, cerca de R$ 981,00. (Ariadne Araújo)

 



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07/07/2006